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Por Mozart Rosa

A Guerra das bitolas (2): a influência da RFFSA

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No capítulo anterior e em outras postagens aqui do site da AFTR relatamos que as jazidas de minério de ferro trouxeram sorte e progresso às linhas da EFCB, a tornando a “preferida” dos governantes em matéria de investimentos e modernização, enquanto as linhas em bitola métrica, em particular as da EFL, foram deixadas em segundo plano.

Mapa das linhas da Leopoldina Railway existentes (em vermelho) e projetadas (tracejado vermelho), data não informada
Fonte: Arquivo Nacional

O modelo de transporte exclusivo de granel adotado pela EFCB por conta do transporte de minérios perdura até hoje, em detrimento do modelo misto (carga e passageiros) com cargas gerais adotado pela EFL. Essa mentalidade ajudou a erradicar o transporte de passageiros por trens em todo o Brasil, além do transporte de cargas de maior valor agregado, que por sua vez adotou o transporte rodoviário por ter sido expulso do trem e também pela maior velocidade do modal rodoviário. Sem a modernização do sistema ferroviário, que poderia oferecer melhores condições, as rodovias foram o caminho para o transporte destas cargas.

Movimento de passageiros na estação Barão de Mauá no sábado de Carnaval de 1972
Fonte: Arquivo Nacional BR_RJANRIO_PH_0_FOT (imagem colorizada digitalmente)

Fato nunca comentado é que as operações da RFFSA de transporte de passageiros em sua totalidade eram deficitárias, por diversos motivos:

  • Pelas gratuidades para funcionários, ex-funcionários e parentes ascendentes e descendentes de funcionários, além de outras categorias profissionais;
  • Pelos preços extremamente baixos cobrados pela RFFSA, mais baratos que os cobrados pelos ônibus. Fato lembrado pela maioria das pessoas quando lembram do transporte de passageiros, mas um fato nocivo quando se pensa na reativação do setor que deve ter como objetivo o lucro, tendo em vista que o investimento será do empresariado. 
  • Pelo uso de locomotiva adequadas para transportar grandes comboios de graneis, mas inadequadas para transporte de passageiros pelo seu consumo.

Existe na Internet um vídeo (abaixo) com uma reportagem da Jornalista Gloria Maria, onde ela embarcava em um trem em São Paulo com destino ao Pantanal. Algumas coisas chamam a atenção: uma mulher entrevistada, comentando sobre o baixo custo da passagem do trem comparativamente ao de um ônibus para o mesmo percurso; e um grupo de empresários paulistas indo pescar no Pantanal. E quem pagava essa farra éramos nós, os contribuintes.


Viagem de trem Rio de Janeiro-RJ x Corumbá-MS em 1986
Fonte: Inspetor Ney

Com a criação da RFFSA o grupo oriundo da EFCB foi ganhando mais poder à medida que a exportação de minério de ferro aumentava e a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) se consolidava como grande exportadora de minério. Com o tempo a RFFSA se tornou não oficialmente o braço logístico da CVRD que usava seu enorme poder político para nomear seus apadrinhados como diretores da RFFSA e mantinha o foco apenas em produtos de seu interesse.

Augusto Trajano de Azevedo Antunes, dono da CAEMI; e Eliezer Batista, presidente e fundador da Vale; eram na pratica os donos da RFFSA e quem efetivamente mandavam nela, nomeando diretores e elaborando metas de trabalho.

Azevedo Antunes e Eliezer Batista

Provavelmente a pedido desses senhores, a RFFSA começa a elaborar projetos para aumentar a capacidade do transporte de minério de ferro de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, que resultou na Ferrovia do Aço. Na ocasião o setor técnico da RFFSA ainda com a presença de técnicos oriundos da EFL propôs a reforma da linha tronco da antiga E. F. Oeste de Minas, partindo de Barra Mansa, para o interior de Minas Gerais. A proposta foi dizimada por um rolo compressor político, pilotado pelos engenheiros egressos da EFCB. Iniciou-se então a obra da Ferrovia de 1000 dias que até hoje não está pronta e que depois de 20 anos foi concluída parcialmente por Azevedo Antunes.

Canteiro de obras da construção da Ferrovia do Aço em 1981
Fonte: CJC Engenharia e Projetos

Com as privatizações no final da década de 1990 esse mesmo grupo dominante, agora todos reunidos sob o guarda-chuva da Companhia Vale do Rio Doce que absorveu a Caemi, arrematou as concessões das malhas da EFCB e da EFL e manteve o mesmo paradigma do transporte de granel determinando que apenas a MRS trouxesse carga para o porto do Rio abandonando ao léu a rede da Leopoldina e toda a estrutura então existente, inviabilizando assim o acesso ao porto do Rio em bitola métrica. Daí é boa parte da motivação que fez a FCA (Ferrovia Centro-Atlântica) ter abandonado as operações no Rio de Janeiro.

Passagem de Nível da Avenida Francisco Bicalho, com um trem a vapor cruzando a avenida rumo a Praia Formosa e ao Porto do Rio. Essa ligação sempre existiu e foi extinta após a privatização concedida à Ferrovia Centro-Atlântica no final da década de 1990
Autor desconhecido (imagem colorizada digitalmente)

Outra maluquice foi a quase paralisação do porto de Niterói que, por ter acesso apenas por bitola métrica, teve seu acesso ferroviário interrompido sem nenhum protesto da RFFSA em 1974, inviabilizando a operação de um porto extremamente operacional.

Estação General Dutra, em Niterói, ponto inicial da Linha do Litoral da EF Leopoldina rumo ao Norte-Fluminense e ao estado do Espírito Santo. A estação ainda existe e fica junto ao Porto de Niterói.
Após a construção da Ponte Rio-Niterói teve sua ligação por trilhos interrompida, permanecendo isolada do restante da malha, que passou a partir da estação Santana do Maruí e, posteriormente, Barreto
Autor desconhecido

Observem que existem espalhados pelo RJ, MG e SP vários clubes, grupos e associações de ex-engenheiros, ex-maquinistas e ex-funcionários da EFCB e da EFL em quantidade bem maior que existem de ex-funcionários da RFFSA. A integração demorou a acontecer. A Associação Mútua Auxiliadora dos Empregados da Estrada de Ferro Leopoldina, a mais antiga instituição de previdência privada do Brasil, até hoje mantém o nome vinculando-a a EFL. Por outro lado a AENFER, Associação dos Engenheiros Ferroviários, se chamava Associação dos Engenheiros da Estrada de Ferro Central do Brasil. Alguém ainda tem dúvida da divisão?

Saguão da estação Barão de Mauá em pleno funcionamento
Fonte: Arquivo Nacional BR_RJANRIO_PH_0_FOT (foto colorizada digitalmente)

Com a transformação da RFFSA, não em um elefante branco mas em um mastodonte branco e não em um cabide de empregos mas em um armário inteiro, as despesas administrativas explodiram e como sempre a redução dessas despesas nunca passou pela demissão de funcionários e sim pela desmobilização das linhas da empresa. Inicialmente vários ramais e sub-ramais deficitários da antiga EFCB, dedicados a pequenas cargas e ao transporte misto, foram erradicados por conta da opção pelo granel. Mas para mostrar mais serviço os gestores focaram nas linhas da antiga EFL, onde os objetivos, além de mostrar serviço de redução de despesas, era destruir o considerado inimigo. Não apenas extinguindo linhas mas destruindo-as, removendo trilhos e se acabando com o que pudesse ser eliminado.

Em Nova Friburgo um trem da Leopoldina vai removendo os trilhos e dormentes por onde passa.
A ferrovia estava sendo erradicada e a linha removida, tarefa ingrata para um trem executar.

Font: Acervo Castro – Pró-memória Sumidouro

Algo parecido com o que o Império romano fez em Cartago após conquistá-la. Destruição total de tudo, a ponto de até hoje não se saber exatamente onde era essa cidade.

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Agradecemos a leitura. Até a próxima !

Imagem destacada: Pátio de Barão de Mauá. Fonte: Arquivo Nacional BR_RJANRIO_PH_0_FOT (imagem colorizada digitalmente)

(A opinião constante deste artigo é de inteira responsabilidade do autor, não sendo, necessariamente, a posição e opinião da Associação)

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Autor

  • Mozart Fernando

    Engenheiro Mecânico formado pela Faculdade Souza Marques em 1992, foi secretário-geral da AFTR no mandato 2017-2020 e atualmente ocupa o cargo de diretor-técnico da instituição. Iniciou sua carreira profissional em 1978 trabalhando com um engenheiro que foi estagiário da RFFSA entre 1965 e 1966. Esse Engenheiro durante esse período trabalhando no setor de cremalheiras acompanhou o desmonte da E.F. Cantagalo e conhecia diversas histórias envolvendo o desmonte da Ferrovia de Petrópolis realizado pela mesma equipe. Histórias que muitos preferem esquecer. Parte dessa convivência extremamente valiosa está transcrita nos textos publicados pela AFTR. Não se considera um “especialista” em ferrovias, outra palavra que hoje no Brasil mais desmerece do que acrescenta. Se considera um “Homem de Negócios” e entende que o setor ferroviário só terá chance de se alavancar quando os responsáveis por ele também forem homens de negócios. Diferente de rodovias, as ferrovias são negócios. E usar para ferrovias os mesmos parâmetros balizares de construção e projeto usados em rodovias redundará em fracasso. Mozart Rosa é alguém que mais que projetos, quer apresentar Planos de Negócios para o setor.

2 thoughts on “A Guerra das Bitolas (2): a influência da RFFSA

    1. Olá !
      Já existiram trens diretos de Dom Pedro II (Central do Brasil) a Paracambi, mas talvez pelo fato da linha ser singela (única) após Japeri e da estação de Paracambi possuir um pátio menor, dificulta as manobras e a logística de tráfego no trecho.

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