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Texto escrito em 04 de fevereiro de 2023 às 12h32
Última atualização em 13 de junho de 2023 às 20h
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[Texto originalmente escrito em fevereiro de 2023, dois dias após o falecimento de Gloria Maria]
Gloria Maria e sua viagem de trem do Rio até Corumbá
Recentemente, a jornalista Gloria Maria nos deixou. Foi fazer reportagens com pessoas bem mais interessantes. Como homenagem a ela, apresentamos aqui uma de suas antigas reportagens para o programa Globo Repórter: uma viagem de trem fazendo o percurso Rio de Janeiro x Corumbá-MS, chegando ao Pantanal. Ela mostra diversos aspectos muito interessantes para quem entende, ou diz entender, sobre ferrovias.
Considerando que Gloria Maria aparentemente não envelhecia, é um pouco difícil datar a reportagem. No entanto, presumimos que tenha sido feita na década de 1980, o que significa que a reportagem teria aproximadamente 40 anos.
A seguir, analisaremos a reportagem e faremos nossos comentários. Abaixo está o link do vídeo:
Inicialmente, entendam o seguinte: a RFFSA, com seus prejuízos monumentais, tinha pouca capacidade de investimento. Sua prioridade, como boa estatal, era a manutenção (porque não dizer, talvez, mordomias…) de suas sedes. Sem os devidos investimentos e recursos necessários para melhorias na operação, a velocidade média das composições era baixa devido à manutenção precária da via permanente. Velocidades maiores poderiam fazer a composição descarrilar. Essa incapacidade de investimento também impedia eventuais retificações de linha, apesar de algumas terem sido feitas, resultando nessa conjunção de fatores. Um tempo de viagem elevado é apenas um dos motivos do tempo absurdo de viagem relatado na reportagem.

A manutenção e a limpeza das composições eram feitas de forma precária. Temos relatos de um de nossos associados, que foi foguista da E.F. Leopoldina no trecho de Niterói a Campos dos Goytacazes, e ele relatava que, no final da operação do “Trem Cacique”, havia vidros quebrados nos vagões, assentos rasgados, além das condições precárias de funcionamento das locomotivas.
Havia também casos de composições excepcionalmente ainda sendo tracionadas por trens a vapor em vez de trens a diesel, isso no início da década de 1980, pouco antes do serviço ser extinto.

O trem foi extremamente importante para a integração nacional, e a ligação Rio x São Paulo, com suas estações, ajudou muito a fomentar o desenvolvimento de cidades do Vale do Paraíba. É lamentável que essa operação tenha sido relegada pela RFFSA. Observem que, na década de 80, como mostra a reportagem em vídeo, tanto as composições quanto o mobiliário já tinham uma aparência envelhecida e acabada.
Acreditamos que, se essas linhas mencionadas na reportagem tivessem sido devidamente retificadas e bem conservadas, permitiriam uma redução no tempo de viagem superior a 30%. Além disso, se um preço real fosse cobrado, essas linhas estariam operando até hoje.

Gloria Maria foi uma excelente repórter, mas possivelmente pouco entendia de ferrovias e pode ter sido mal assessorada na produção dessa reportagem. O balanço dos trens ao qual ela se refere na mudança de vias nada tem a ver com a bitola em si, mas sim com a falta de manutenção das linhas. Especificamente as linhas acima de Bauru-SP, que já foi um dos maiores entroncamentos ferroviários do Brasil e hoje estão em enorme decadência.
Sobre a decadência do transporte ferroviário em Bauru-SP, recomendamos a leitura do texto abaixo, publicado por nós da AFTR, com informações sobre o que aconteceu naquele importante entroncamento ferroviário.
NOSSA ANÁLISE SOBRE O VÍDEO
Colocaremos nossos comentários sobre o vídeo no tempo em que o motivo desse comentário ocorre, facilitando ao leitor a compreensão do texto.
Aos 5″, bem no início do vídeo, Gloria Maria dá uma tremenda derrapada incompatível com a repórter competente que ela era. Ela fala: “Nós escolhemos um meio de transporte que, apesar do romantismo e do fascínio das velhas histórias cinematográficas, está fora de moda: o trem”. O trem ainda é um meio de transporte que tem muito a acrescentar em vários países, especialmente aqui no Brasil. Infelizmente, vários motivos, e já explicamos diversos deles em outras postagens, fazem com que o trem no Brasil ainda não seja usado para transporte de passageiros em médias e longas distâncias, como deveria.

Aos 2’30”, ela fala sobre “a passagem ser barata”. Na época da reportagem, a passagem dos trens era bem mais barata do que a do ônibus. Isso explica parte dos prejuízos da RFFSA, pois a conta não fechava. A RFFSA cobrava tarifas irreais, usando o argumento da “tarifa social”. E era preciso investir na manutenção da via permanente, na manutenção das composições e no pagamento do pessoal. Sendo assim, o serviço, apesar de existir, era ruim. Esse problema ocorria também na FEPASA.
Aos 2’58”, ela fala “nem todo mundo paga”. Esse era outro problema, a evasão.
Aos 3’50”, ela fala da velocidade média de 50 km/h. Uma velocidade maior, como já explicamos acima, faria o trem descarrilar.
Aos 4’00”, novamente alguém cita o preço baixo da passagem.
Aos 4’15”, o malfadado comentário sobre as bitolas e o balançar maior na bitola de 1000mm. Mas os motivos disso ela não explica, que não tem a ver com o fato de ser bitola métrica.
Aos 5’55”, escutem o barulho do trem passando pelas talas de junção. Se os trilhos fossem soldados, isso não aconteceria. Novamente, a questão da falta de caixa impedia o uso de solda, mais eficiente, mas mais cara.
Aos 6’15” é provável que ela tenha cometido um outros deslize, onde diz que o trem era o único meio de transporte para aquelas populações. As populações tinham à sua disposição linhas de ônibus, mas o trem, por ser extremamente barato, era muito usado.

Aos 6’40”, aparece algo que certamente não será observado pela maioria. Ela entrevista o maquinista da composição, na cabine, no que aparenta ser uma GE, das antigas, com um enorme motor que consumia uma formidável quantidade de diesel. Locomotiva essa adequada para tracionar composições de carga, mas tracionando trens de passageiros: um dos diversos motivos dos prejuízos da RFFSA, que já apontamos e continuamos a ressaltar hoje em dia, em projetos que isso é proposto com certa frequência.
Aos 7’30”, ela mostra como o serviço era muito ruim. Viajar naquelas condições era uma aventura.

Aos 8’10”, Gloria Maria apresenta uma situação que consideramos a “cereja do bolo” e já foi relatada anteriormente em uma de nossas postagens: um grupo de paulistas indo pescar no Pantanal e alugando um vagão para isso. Até aí, nada demais. Quem tem recursos os gaste da forma como achar melhor. Mas, nesse caso específico, pessoas aqui do Rio de Janeiro, mesmo os que nunca foram ido ao Pantanal, pagavam impostos que mantinham a RFFSA para possibilitar que grupos fossem ao Pantanal pescar. Isso não é algo que me pareça muito certo, e é um exemplo prático de que a “tarifa social” sempre foi um engodo, uma demagogia.
Aos 9’45, ela fala do tempo total de viagem: 49 horas de viagem. Alguém se habilita a comentar algo sobre isso?

Essa era a realidade da RFFSA na época em que essa reportagem foi feita, mas que serve para qualquer época da existência da estatal. É um reflexo de como essa empresa se comportava. Essa reportagem é um maravilhoso documento histórico.
Apesar de alguns lapsos, queremos prestar uma reverência e deixar um forte abraço para a Gloria Maria, onde quer que ela esteja. Está fazendo muita falta.
Quem dera tivéssemos hoje mais repórteres como ela.
Nossa singela homenagem a essa profissional que deixa saudades.
As informações constantes neste texto não refletem, necessariamente, a opinião da instituição, sendo de inteira responsabilidade do autor.
Foto de capa: montagem com Gloria Maria na janela de um trem que fazia o trajeto até o Pantanal.