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Categoria: Reconhecimento de trecho/Caminhada contemplativa
Data: 27 de março de 2022
Objetivo cumprido: Sim
Participantes: Adilca Maria, Daddo, Regiane, Ronaldo, Vilmar.
Descrição da atividade: com a criação do fórum de debates da AF Trilhos do Rio em 2011, diversos pesquisadores e historiadores se reuniram em torno desse espaço, debatendo e expondo seus conhecimentos, pesquisas e resultados. Um dos membros cadastrados foi o ilustre e um dos maiores pesquisados e estudiosos sobre transportes do mundo, principalmente Bondes, Trens e Ônibus: o Norte-Americano Allen Morrison. Em meados de 2012, 2013 o próprio Mr. Morrison entrou em contato conosco para saber informações sobre uma linha de bondes entre Santa Teresa e o Alto da Boa Vista. Este serviço durou pouco tempo, e fazia correspondência com o Restaurante Sumaré, administrado também pela empresa responsável pela operação dos Bondes, que transportavam os frequentadores desse estabelecimento. Diz-se que possuía serviços diferenciados e um belíssimo panorama da Cidade Maravilhosa à época.

Fonte: Allen Morrison

Entretanto na ocasião nós não sabíamos muitos detalhes além dos já publicados no site do próprio Morrison (clique aqui para conhecer), e não pudemos colaborar com suas pesquisas.

Allen Morrison faleceu no domingo dia 06 de janeiro de 2019 aos 84 anos, em Manhattan, New York City. Na foto abaixo Mr. Morrison (à esquerda, de boné branco) mostrava seu conhecimento e dedicação com os bondes, trólebus e ônibus nos EUA.

Fonte: Hélio Oliveira, via Leandro Castro (Telegram da AFTR)

Curiosamente, pouco tempo depois ao realizar uma limpeza e organização de acervo, um dos membros da AFTR encontrou uma foto do Bonde trafegando nesse trecho citado, imagem esta que não havia sido divulgada e provavelmente não era de conhecimento de Allen Morrison. Desde então planejamos organizar e realizar uma pesquisa minuciosa onde essa linha de Bondes passava, mesmo sabendo que Morrison havia percorrido o trecho e nada encontrou na época, e que se passaram mais de 110 anos da erradicação da linha de Bondes nesse trecho, ainda nos anos 191x.

 

Quem sabe se poderia encontrar algo ainda? Seria possível?

 

Naqueles anos não existia nada na região, apenas a linha de bondes com seus trilhos que desbravaram a mata fechada e eram a única forma de comunicação terrestre direta entre as duas regiões da cidade do Rio de Janeiro. Considerada quase um devaneio pela baixa chance de se encontrar algum resquício do que existiu na região, há mais de 110 anos atrás, essa expedição ao ser realizada também seria uma homenagem póstuma ao saudoso, pesquisador e historiador. Então, vamos realizá-la! Mas veio a pandemia COVID-19 e os planos foram arquivados…

O Bonde circulando no trecho entre Santa Teresa e o Alto da Boa Vista no começo do século XX. Fonte: Charles Dunlop/Acervo Trem de Dados (imagem colorizada digitalmente)

Contudo, no ano de 2022 e a redução do estado calamitoso de saúde em se encontrava o mundo nos meses anteriores, agendamos uma retomada nas atividades presenciais da AFTR. Marcada inicialmente para o dia 20 de fevereiro, a 1ª Expedição Allen Morrison de Pesquisa sobre Bondes foi adiada devido à previsão do tempo para o dia (e nem choveu!). Remarcada para o dia 27 de março, infelizmente ocorreu um esvaziamento no número de participantes devido a outros compromissos e imprevistos, mas certamente esse percurso será feito novamente, pois foi bastante bacana, agradável, tranquilo de se percorrer e muito surpreendente. Detalhes serão informados mais abaixo.

Durante a Expedição foram observados, descobertos e registrados diversos detalhes, como mencionado abaixo:

  • Por atravessar uma região serrana, existem no trajeto diversos aclives e declives, mas quase todos suaves, poucos trechos são de média/baixa inclinação;
  • O trajeto proporciona vistas e panoramas belíssimos;
  • Todo o trecho é pavimentado com asfalto;
  • Provavelmente a pavimentação foi realizada sobre a via férrea, sem remoção dos trilhos. Detalhes mais abaixo;
  • Curvas fechadas foram compensadas com obras de calçamento para compensar os raios de curva maiores, necessários ao tráfego dos veículos sobre trilhos;
  • Não há iluminação noturna dentro do território do Parque Nacional da Tijuca;
  • A estrada alterna trechos bastante sinuosos, para vencer o relevo, com trechos mais retos;

Após registros, e análises desses registros, tanto in loco quanto posteriormente ao examinar as imagens produzidas, concluiu-se que: sim! Ainda há possíveis vestígios da via férrea no trecho!

Abaixo o descritivo da atividade:

Marcado para às 8h da manhã, o início da Expedição se deu, como de costume, na estação Dom Pedro II/Central do Brasil. Seguimos para o ponto de ônibus da linha 007 Central x Silvestre, que demorou um pouco para chegar e saiu apenas às 8h30 do ponto final. Entretanto ele nos deixou no ponto inicial da caminhada no horário certo, às 8h55. Iniciamos o percurso pela Estrada Dom Joaquim Mamede, que teve origem, assim como as demais vias da região, na própria linha de Bondes aberta no meio da mata. Logo no princípio algumas percepções: a via estreita que permite apenas a passagem de um veículo por vez; uma luminária bem antiga e, possivelmente, anterior à época de operação da companhia de energia Light; e um trilho fincado na lateral da estrada, provavelmente remanescente da via férrea antiga e extinta, que era exposta e não embutida em vias como os trilhos atuais do Bonde de Santa Teresa e os do VLT Carioca.

Fotos: Daddo Moreira/AFTR

Continuando a caminhada, o sol começou a aquecer mais do que pensávamos. Apesar do trecho ser bastante arborizado, em terreno elevado, e ter rampas suaves, mas perceptíveis, o calor começou a se fazer presente, o que poderia dificultar a realização da atividade.

Chegando próximo ao Km3, na “Casa do Bispo”. Foto: Daddo Moreira/AFTR

Normalmente, quando calculamos a duração de uma atividade da AFTR, planejamos que o ritmo de caminhada seja de 2km/h ou no máximo 2,5 km/h, já que fazemos algumas pausas para fotos e análises de vestígios. Mesmo assim o ritmo do grupo foi excelente, acima de 3 km/h e com aproximadamente 45 minutos já estávamos próximos do km 3, na chamada Casa do Bispo. Ali em frente ficava o Restaurante Sumaré, como citado e ilustrado mais acima neste texto.

Heliporto onde ficava o Restaurante Sumaré. Foto: Daddo Moreira/AFTR
Restaurante Sumaré, na mesma curva da foto recente. Fonte: Site Tramz.com / Allen Morrison

As fotos acima foram feitas aproximadamente no mesmo ponto, mas a antiga no alto e a recente ao nível do solo. Na ocasião em que passamos havia algumas pessoas praticando aulas de direção automotiva no local, hoje transformado em Heliporto da Casa do Bispo. Havia, além deste local, policiamento regular em todo o trecho, o que nos deixou mais tranquilos em relação à segurança e realização do evento. Logo à frente tem início a área de jurisdição do Parque Nacional da Tijuca, onde o tráfego e acesso de veículos está proibido e nem iluminação pública tem, além de outros mobiliários de suporte, o que nos deixou um pouco receosos visto que, a partir dali os vestígios, se ainda houvessem, poderia ser mais difíceis de serem encontrados. Mas não foi bem o que ocorreu, felizmente. Antes mesmo de cruzarmos a guarita de acesso notamos algo suspeito em frente ao Heliporto:

Foto tirada no sentido inverso da foto anterior, em frente ao Heliporto. Notaram algo sugestivo na imagem?. Foto: Daddo Moreira/AFTR

Vamos assinalar algo na imagem, vejam a ponta das setas. Seria um trilho em curva, soterrado pelo asfalto, parece? O que acham?

O que acham? É um trilho da linha de Bondes sob o asfalto? Foto: Daddo Moreira/AFTR

Seguindo a caminhada, já dentro do Parque Nacional da Tijuca, observamos mais alguns vestígios que, a julgar pela preservação e controle de acesso à região, além de todos os cuidados e manutenção da administração do parque, permite que alguns, no mínimo indícios, sejam preservados. Um exemplo é o paredão, ou muro de contenção, feito de pedra, notadamente de construção antiga. Vários trechos possuem essa obra, além de boeiros e obras de escoamento de água.

Fotos: Daddo Moreira/AFTR

Neste ponto a estrada, antigo leito da linha de Bondes, possui muitas curvas, certamente devido à necessidade de se vencer o relevo da região, já que ferrovias não sobem normalmente grandes inclinações diretamente, a não ser no uso de túneis para evitar muitas curvas, ou o uso de tração a cremalheira, que permite o tráfego em trechos inclinados.

Curva de 180º, bem fechada nesse trecho. Nota-se o calçamento onde o fotógrafo fez o registro, possivelmente era por onde os trilhos passavam, já que ferrovias não tem raio de curva muito pequenos. Foto: Daddo Moreira/AFTR

Mais à frente vimos algo bastante suspeito, um indício significativo de que ali passou uma via férrea. Observem a foto abaixo, antiga e da coleção Allen Morrison:


Observem que, na imagem, o Bonde passa por um trecho onde tem uma obra de arte ferroviária: um pontilhão sobre uma galeria de escoamento de água. Vejam que essa obra, ao nível dos trilhos, é inteiriça onde passa os trilhos e aberta fora do leito ferroviário. Para destacar a suposição, observem abaixo o detalhe descrito:

Quando passamos pelo trecho abaixo, esse detalhe não foi percebido no momento. Pouco depois veio o pensamento, e um dos participantes voltou ao local. Foi observado o cenário e uma hipótese foi especulada: possivelmente, após a erradicação da ferrovia, o trecho foi pavimentado sem a retirada dos trilhos. Em alguns pontos a via férrea foi utilizada como base, como neste exemplo da galeria de escoamento de água. E de acordo com a ilustração feita abaixo, baseada na foto original, poderia definir o que foi feito naquele trecho:

A imagem mostra uma galera para escoamento de água, coberta por bueiros. Mas no centro da estrada estes bueiros não estão presentes. Será que ali os trilhos passavam? Foi desenhada a linha com os trilhos, de forma ilustrativa. Foto: Daddo Moreira/AFTR

Não satisfeito em apenas registrar e especular sobre a passagem dos trilhos no meio da via, cobertos por asfalto, decidiu-se colocar um celular no espaço de um daqueles bueiros para tentar fotografar dentro da galeria de águas. Eis o registro:

Foto: Daddo Moreira/AFTR

Seria um trilho sob o asfalto? O que acham? A foto é a original, não foi manipulada nem editada.

Continuamos em suave aclive, o que despertava a curiosidade em alguns dos participantes sobre a partir de qual momento começaríamos a descer, visto que até ali a estrada só subia.

Parada providencial em uma fonte de água, para um rápido banho e abastecimento de nossas garrafas para saciar a sede. Foto: Daddo Moreira/AFTR

Em determinado ponto chegamos a uma fonte natural de água corrente, em parte canalizada. Aproveitamos para abastecer nossas garrafas com água e alguns dos integrantes do grupo aproveitaram para se hidratar e tomar, literalmente, um banho. Realmente essa água foi revigorante pois, apesar de o percurso não ser exaustivo, nos deu uma boa dose de energia extra. A mesma opinião foi amistosamente confirmada por ciclistas e praticantes de atividades físicas no trecho. E mais surpresas viriam mais adiante…

Após o calor inicial, ao adentrarmos a Floresta da Tijuca o clima tornou-se mais ameno, pois as árvores são mais frondosas junto à estrada, cobrindo-a em alguns pontos e proporcionando farta sombra. Além disso o cenário, junto com o silêncio e calma do trecho por ser isolado de áreas urbanas, oferece um ambiente muito acolhedor. Não bastando isso, outro detalhe foi percebido na estrada e nos intrigou um bocado: seria mais um trecho com trilhos soterrados pelo asfalto novamente

Detalhe suspeito no asfalto, lembra muito uma via férrea com os trilhos soterrados. Seria mesmo? Foto: Daddo Moreira

A partir desse ponto a estrada começa a alternar entre declives suaves e aclives, igualmente leves, que percorremos desde o início. As curvas também são mais abertas, com raios grandes. Outro detalhe percebido é a quantidade de árvores caídas, e serradas para desobstruir a via, uma delas aparentemente cortada há poucos minutos antes. Algumas outras árvores nos chamaram a atenção pelo tamanho, belíssimas!

Uma das árvores caídas. Foto: Daddo Moreira/AFTR

Esperávamos também visualizar os vários mirantes e visuais que o trecho proporciona, mas um prêmio surgiu, melhor do que isso: a cerração. Apesar de bloquear a nossa visão e não permitir a visualização da cidade ao fundo, deixou o evento com um clima muito especial. Não ventou forte e atravessamos a nuvem como se estivesse em outro mundo, ou ao menos em outro país.

Fotos: Daddo Moreira

Ao chegarmos ao acesso (proibido) às antenas de comunicação, encontramos uma segunda guarita e decidimos parar ali para fazer um lanche, por volta de meio-dia. Já passávamos do km 10, com o cronograma bem adiantado em relação a planejado. Após conversarmos um pouco com um guarda que estava na guarita, continuamos a caminhada, ainda “dentro da nuvem”. A temperatura estava muito agradável e, curiosamente, neste momento recebíamos fotos no celular de amigos que estavam na praia lá embaixo.

O acesso às antenas de transmissão, à esquerda. O carro branco está no percurso por onde viemos, e depois seguimos à direita. Foto: Daddo Moreira/AFTR

Mais algumas centenas de metros e chegamos em mais um marco do trecho: chamada de “Caixa d’água do Sumaré, trata-se de uma estrutura para contenção de encostas e de águas pluviais, de construção aparentemente recente, ao lado de um tipo de “caixa” ou “registro” mais antigo, com a aparência grafitada. Não sabemos dizer o que se trata, mas um aspecto que chamou a atenção é a largura diminuta que a via tem naquele trecho, bem estreita.

Local conhecido como “Caixa d’água do Sumaré”. Foto: Daddo Moreira/AFTR

Mais à frente outro detalhe que não poderia passar despercebido: um grande paredão de pedra que, na época, deve ter sido removido e esculpido manualmente. Entretanto nota-se que já foram feitas intervenções mais recentes para garantir a estabilidade geológica e a segurança de quem transita pelo trecho.

Paredão rochoso. Foto: Daddo Moreira/AFTR

Aliás, falando em estabilidade, ops, instabilidade geológica, pudemos perceber vários pontos de deslizamento ocorrido ou iminente: algo que pode acontecer a qualquer momento.

 

Pontos em que podem ocorrer deslizamentos a qualquer momento. Foto: Daddo Moreira/AFTR

Mesmo com a nuvem que surgiu para refrescar e embelezar o ambiente, mas tirando o cenário deslumbrante que se descortina de vários pontos da estrada em mirantes de tirar o fôlego, o ambiente que presenciamos foi digno de tornar-se inesquecível, uma experiência a ser repetida sempre que possível.

Essa trilha chamou bastante a atenção: um cenário digno do filme “A Bruxa de Blair”, despertando fascínio e ao mesmo tempo apreensão… o que poderia ser encontrado ao adentrar o caminho? Foto: Daddo Moreira/AFTR
O Mirante Bela Vista, onde na ocasião não foi possível ver uma vista de tirar o fôlego, mas sim recuperar o fôlego e apreciar a natureza mesmo assim…
… possibilitando, no máximo, ver o bairro da Tijuca lá embaixo. Fotos: Daddo Moreira/AFTR

Infelizmente alguns (poucos) detalhes contaram como negativos, como este balão que vimos enroscado em árvores de um Parque Nacional, um absurdo, que poderia se tornar uma tragédia e uma perda de flora e fauna sem tamanho.

Balão preso em árvores. Foto: Daddo Moreira/AFTR

E concluindo, mais alguns marcos e obras antigas presentes no trecho, algumas sugestivas como mais boeiros e sistemas de escoamento de água e contenção de encostas, até marcos quilométricos (que a princípio não tem a ver com a via férrea) e grandiosas rochas esculpidas junto à estrada. No final da Expedição de Pesquisa, uma missão cumprida, um sucesso completo e uma satisfação incomensurável, chegamos à Praça Afonso Viseu após mais de 16 kms percorridos tranquilamente a pé, onde o grupo se despediu e voltou para suas casas, com um gostinho de “quero de novo”.

Obra antiga de contenção de encosta e escoamento de água. Foto: Daddo Moreira/AFTR
Marco quilométrico. Foto: Daddo Moreira/AFTR
Grande rocha junto à estrada. Foto: Daddo Moreira/AFTR

Antes de finalizar não poderíamos deixar de agradecer a todos os participantes e envolvidos, que proporcionaram um ambiente de grande amizade, bom humor, dedicação, persistência e companheirismo. Verdadeiros amigos e guerreiros: mais uma etapa concluída, mais uma conquista para a lista de cada um.

Certamente voltaremos a esse trecho para análises mais apuradas do que foi encontrado. E aí, você vai perder? Fique ligado na agenda da AFTR e, se curtiu este conteúdo e informações, comente e compartilhe.

Até a próxima!

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