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Olá, Amigas e Amigos!
Semana passada tivemos a primeira parte de uma série de brilhantes textos redigidos por Délio Araújo, falando sobre bitolas e a unificação ocorrida em alguns países. Hoje, aqui neste artigo, damos sequência ao texto, concluindo esta série bastante informativa sobre o assunto.
Desejamos a todos uma excelente leitura!

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A unificação das bitolas ferroviárias (III):

O caso da Europa continental

Délio Araújo

Centro-Oeste, n.º 75 (1º-Fev–1993).

A bitola uniforme nos países da Europa constituiu o fator principal para estabelecer uma verdadeira rede ferroviária continental.

Na prática, ficam excluídas dessa rede as nações da extinta União Soviética (URSS) e a Finlândia, países que adotaram a bitola de 1,524 m, no Leste; e a Espanha e Portugal, na Península Ibérica, a oeste, que adotaram a bitola de 1,674 m.

Como curiosidade, saiba que ambas as bitolas existiram nos EUA, cujo sistema ferroviário foi unificado mais por estreitamento do que por alargamento de bitolas.

Mediante acordos entre governos e acordos entre empresas ferroviárias, em sua maioria estatais., o intercâmbio de material rodante e de tração chega atualmente a tal intensidade e amplitude, que, dizem alguns analistas de mercado, só faltam as ligações França-Inglaterra (pelo túnel sob o Canal da Mancha) e Dinamarca-Suécia (por pontes e túneis ora em projeto), para que a rede ferroviária da Europa ocidental se transforme no maior sistema contínuo e unificado do mundo.

A continuidade da bitola ferroviária (1,435 m) estende-se da Turquia (que tem pequeno território na Europa), da Suécia, e do oeste da antiga URSS e da Finlândia, até a Inglaterra e a fronteira da Espanha com a França.

Essa continuidade uniforme de bitola foi um dos fatores básicos para a formação do Mercado Comum e da Comunidade Econômica Europeia.

A eficiência de um sistema ferroviário é considerada, hoje, em todas as universidades onde existe a cadeira de Economia dos Transportes, resultado da uniformidade da bitola, e não tanto da sua largura. É, também, resultado do gabarito do material rodante.

Esta visão da uniformidade da bitola ferroviária foi fruto de intensas discussões, ocorridas ainda no século passado. Dois países, entretanto, divergiram da visão geral da Europa continental: Espanha e Rússia.

Espanha

Quanto à Espanha, o principal argumento para adoção da bitola de 1,674 m foi o da segurança nacional. Com essa bitola, argumentaram tanto a classe militar como a dos empreiteiros de obras públicas, o país ficaria mais seguro. A bitola diferente impediria que forças invasoras utilizassem seu próprio material rodante e de tração na invasão do país.

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Fonte: Gauge Master Retail

Ora, o invasor poderia empregar o equipamento do próprio país invadido, como se verificou alhures, em diversas ocasiões. E a invasão por terra, propriamente dita, sempre se deu mediante o emprego da infantaria, cavalaria e artilharia tirada a cavalo. Hoje, teríamos aviões, colunas blindadas, mísseis, carros de assalto, etc.

A estrada de ferro era um meio de apoio secundário, segundo os estrategistas prussianos, franceses, italianos e austríacos. Por isso, a Europa Central descartou o argumento militar, em que se apoiavam a Espanha e a Rússia.

Assim, o argumento militar e o lobby dos empreiteiros conseguiram impor a lei de 1855, que estabeleceu a bitola da Espanha em 6 pés espanhóis (1,674 m).

Isolado pela Espanha do resto da Europa, Portugal só pôde adotar a mesma bitola. Não havia alternativa.

Por tradição castelhana ou interesse de construtoras apoiadas por financiamentos e capitais externos, Argentina, Chile, Índia (que incluía Paquistão e Bangladesh) e Ceilão (hoje Sri Lanka) construíram linhas nesta bitola.

Por que esta bitola foi tão aceita em países sem tradição espanhola, e já era empregada em vários países, antes da lei de 1855, inclusive na ferrovia brasileira do Barão de Mauá?

É que estava bastante viva a memória do teste da Great Western, na Inglaterra (ver a “Batalha das Bitolas”, CO-65/12). A bitola espanhola era “estreita” em relação à bitola larga inglesa (2,14 m). Era, portanto, um compromisso financeiro de quem não podia construir na bitola larga da época.

No entanto, o custo das construções na bitola de 1,674 m levou à adoção de bitolas estreitas em várias regiões, na Índia, Chile, Argentina, Austrália e outros países, que desse modo passaram a dispor de sistemas ferroviários heterogêneos. Assim, as bitolas na Argentina são de 1,674 m, 1,435 m, e 1,000 m. No Chile, a metade sul da rede é de 1,674 m, e a metade norte é de 1,000 m. A Austrália tem 3 bitolas predominantes, de 1,600 m, 1,435 m, e 1,067 m.

Rússia

A Rússia adotou a bitola de 1,524 m pelos mesmos argumentos que a Espanha: Segurança contra invasões.

Aliás, esta foi a bitola oficial dos EUA, onde chegaram a ser construídas grandes extensões neste afastamento de trilhos.

Fonte: TransSiberianExpress.net

No entanto, desapareceu dos EUA com a unificação, que, na prática, ocorreu principalmente por estreitamento para 1,435 m.

Por influência da Rússia, à qual ficou anexada, a Finlândia também adotou a bitola de 1,524 m.

Bitola métrica

E a bitola de 1,000 m, existe na Europa? Sim, a Espanha possui uma rede secundária na bitola de 1,000 m, hoje reunida na Feve — Ferrocarriles de Via Estrecha.

Também a têm outros países europeus, entre eles, Suíça e Alemanha, sempre em linhas secundárias.

A França também tem alguns trechos de interesse local, nesta bitola, assim como a Suécia e outros países.

Unificação

A Alemanha decidiu pela bitola-padrão internacional (1,435 m) em 1865, na Conferência de Dresden. Não convinha adotar o argumento militar, nem bitolas largas difíceis de serem construídas. A uniformidade era importante para a unidade política dos Estados alemães.

Em 1866, ocorreu a Conferência de Berna, da qual participaram várias nações europeias. Decidiu-se pela bitola de 1,435 m. A partir daí, bitolas mais largas foram estreitadas o que foi bem fácil, por serem de extensão relativamente reduzida.

Todas as linhas construídas posteriormente na Europa continental, exceto Portugal, Espanha e Rússia, já foram iniciadas na bitola-padrão.

Atualmente, ainda há alguns problemas de gabarito. Por exemplo, algumas linhas inglesas não comportam o material rodante continental. Esta dificuldade deverá ser sanada mediante o “alargamento de gabarito”. Portanto, o importante não é tanto a largura da bitola, mas sua uniformidade e, também, a uniformidade do gabarito.

Nos últimos anos, a Espanha lançou o plano de redução da bitola ferroviária para adotar a bitola-padrão (1,435 m). Portugal deverá seguir o exemplo. Os custos serão elevados, mas a integração econômica europeia exige o tráfego ferroviário, hoje interrompido por quebras de bitola.

De certo modo, a Espanha já se adiantou: O trem-bala de Madri a Córdoba e Sevilha, inaugurado há poucos meses, já utiliza a bitola-padrão (1,435 m).


A unificação das bitolas ferroviárias (IV):

O caso das ferrovias do Japão

Délio Araújo

Centro-Oeste, n.º 76 (1º-Mar–1993).

A 1ª ferrovia japonesa foi inaugurada 18 anos depois da iniciativa pioneira do Barão de Mauá no Brasil. Em 1872, foi aberto ao tráfego o primeiro trecho ferroviário no país do Sol Nascente.

Ligava Shimbashi, hoje estação a 1,9 km da estação central de Tóquio, a Yokohama, cidade a 27 km de Shimbashi, e hoje o maior porto e 2ª maior cidade do Japão.

Fonte: Japanese Nostalgic Car

Segundo os horários de maio/1992, esse trecho original hoje é percorrido, nos dias úteis (segunda a sexta-feira), por quase 500 trens diários, entre suburbanos, passageiros de longa distância, passageiros de média distância, cargueiros e trens de contêineres.

No entanto, a rede ferroviária japonesa não teve bitola uniforme desde o início. Até o início da primeira década deste século, predominavam as bitolas de 1,067 m, na prática, é bitola “métrica”, de 0,75 m, de 1,35 m, e uma ou outra linha de 1,435 m.

O estadista e astuto diplomata Takashi Hara, logo no limiar do corrente século, percebeu o problema da diversidade das bitolas para a economia japonesa na totalidade.

Fonte: Wikipedia

A uniformização, segundo Hara, deveria dar-se de imediato, pois seria um passo indispensável para a integração geral do mercado interno, dos portos, e do fluxo, já então relevante, de comércio exterior.

Por outro lado, havia um leque de problemas a serem resolvidos:

(1) A uniformização devia ser efetuada com rapidez;

(2) Os custos e exigências de capital deveriam ser minimizados;

(3) As bitolinhas deveriam ser incluídas no programa de unificação;

(4) A bitola a ser escolhida como padrão deveria atender às exigências do transporte militar.

Takashi Hara teve que acautelar-se contra o enorme poder político do Exército Imperial japonês. Os chefes militares preferiam uma bitola um tanto larga, levados pela experiência das guerras contra a China e a Rússia. Ele argumentou que o Japão era um arquipélago; daí, o mais importante seria dispor de uma esquadra potente e rápida, aliada a bases navais estratégicas.

Aceitos estes argumentos, os militares aceitaram, em consequência, os argumentos de ordem econômica:

Uma bitola estreita poderia ser construída com maior rapidez; com menos recursos financeiros; com facilidade de alargamento dos importantes trechos em bitolinhas; e com elevada facilidade de estreitamento dos trechos de bitolas mais largas.

Assim, adotou-se o que seria um meio-termo: A bitola de 1,067 metro.

E por que não a bitola exata de 1,000 metro, ou “métrica”?

Por influência do sistema inglês de medidas, seguido pela Inglaterra e Estados Unidos, países então de enorme influência tecnológica sobre o Japão.

Em poucos anos, as ferrovias japonesas estavam unificadas na bitola de 1,067 m, da mais setentrional das 4 ilhas maiores do arquipélago, até a mais meridional.

O Japão é formado por 3.400 ilhas, com área total de 377 mil km². De todas elas, 4 são importantes para o assunto.

Ao sul, a ilha de Kyushu abriga as cidades de Nagasaki e Harata — esta última, ponto terminal sul do Trem Bala. Segue-se Honshu, a principal das 4 grandes ilhas, com Tóquio, Osaka, Nagoya e outras metrópoles. Depois, Shikoku, abaixo da anterior, com cidades importantes, como Takamatsu, Tadotsu e Uwajima. Ao norte, a ilha de Hokkaido, cuja cidade principal é Sapporo.

É nesta ordem, de sul para norte, os quais são publicados os horários das ferrovias japonesas.

Fonte: VFCO

A unificação em 1,067 metro não trouxe problemas para o Japão.

Hoje, há outras bitolas — especialmente em linhas de bondes, algumas de metrô e ferrovias urbanas. P. ex., das 10 linhas de metrô de Tóquio, 6 eram ou são de 1,067 m: — As linhas Hibiya, Tozai, Chyoda, Yurakucho, Hanzomon e Mita. São tão rápidas e tão eficientes como outras com bitolas mais largas.

A bitola de 1,067 m é, pois, altamente satisfatória, sob os pontos de vista tecnológico e econômico-financeiro.

Até a década de 50, predominava no Japão a tração a vapor. Daí para frente, passaram a predominar a tração elétrica e a diesel-elétrica.

Fonte: VFCO

Veja, nos Quadros I e II, se a CBTU, a RFFSA ou a Fepasa tivessem o desempenho desses horários, apresentados como exemplos para nossa bitola métrica.

Em 1964, foi inaugurada a primeira linha do Trem Bala, de Tóquio a Osaka, na bitola de 1,435 m. Os japoneses, na época, não acreditavam que a bitola de 1,067 m pudesse correr acima de uns 110 a 120 km/h.

Agora, já se pensa em correr 160 km/h, depois que o Estado australiano de Queensland e a África do Sul planejaram correr a 160 km/h em 1,067 m.

Mais ainda: A bitola de 1,067 m correrá a 200 km/h por volta de 1996, e para 1998 o projeto japonês é correr a 250 km/h!

Portanto, fica a discussão sobre se vale a pena expandir o Trem Bala (bitola 1,435 m), ou deixar certas linhas, que seriam dele, para a bitola 1,067 m.

Note que o Trem Bala circula só em linhas exclusivas, construídas especialmente para ele, com raios de curva extremamente abertos, linhas percorridas por um único tipo de trem, e só para passageiros, sem cruzamentos, sem passagens de nível, e quase toda extensão em viadutos ou túneis!

No Quadro III, veja o desempenho do Trem Bala (1,435 m) comparado ao dos trens comuns — em trechos de Tóquio onde as condições de curva são as mesmas da rede de 1,067 m, por não ser possível construir uma linha muito reta e expressa para o Trem Bala.

Fonte: VFCO

Como foi que os japoneses aprenderam que a bitola estreita podia correr a 110 ou 120 km/h?

No período entre a I e a II Guerra Mundial, progressivamente foi o Japão envolvendo o Oriente sob o domínio, ao menos econômico, de sua política. Depois, veio a ocupação militar.

Os holandeses, que dominavam a atual Indonésia, haviam introduzido o famoso serviço de passageiros entre Jacarta e Surabaia.

As 4-6-2 desta linha, conhecidas como “as Pacific de Java”, iam a 110, e mesmo a 120 km/h!

“As Pacific de Java atingiam 120 km/h na bitola de 1,067 m, na década de 1920”. Foto: Délio Araújo.

Com a ocupação japonesa da Indonésia, durante a II Guerra Mundial, os vivos nipônicos aprenderam a lição, que nós, ainda sequer conhecemos.

Abaixo, link para os textos:

http://vfco.brazilia.jor.br/ferrovias/bitolas/unificacao-bitola-ferrovias-Europa.shtml

http://vfco.brazilia.jor.br/ferrovias/bitolas/unificacao-bitola-ferrovias-Japao.shtml

 

Texto escrito por Délio Araújo e publicado no site VFCO.
Foram realizadas pequenas e pontuais modificações visando a ortografia vigente
Agradecimentos a Flávio Cavalcânti pela gentileza e cessão dos textos para publicação no site Trilhos do Rio
Imagem de capa: Railway Wonders of the World

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Autor

  • Mozart Fernando

    Engenheiro Mecânico formado pela Faculdade Souza Marques em 1992, foi secretário-geral da AFTR no mandato 2017-2020 e atualmente ocupa o cargo de diretor-técnico da instituição. Iniciou sua carreira profissional em 1978 trabalhando com um engenheiro que foi estagiário da RFFSA entre 1965 e 1966. Esse Engenheiro durante esse período trabalhando no setor de cremalheiras acompanhou o desmonte da E.F. Cantagalo e conhecia diversas histórias envolvendo o desmonte da Ferrovia de Petrópolis realizado pela mesma equipe. Histórias que muitos preferem esquecer. Parte dessa convivência extremamente valiosa está transcrita nos textos publicados pela AFTR. Não se considera um “especialista” em ferrovias, outra palavra que hoje no Brasil mais desmerece do que acrescenta. Se considera um “Homem de Negócios” e entende que o setor ferroviário só terá chance de se alavancar quando os responsáveis por ele também forem homens de negócios. Diferente de rodovias, as ferrovias são negócios. E usar para ferrovias os mesmos parâmetros balizares de construção e projeto usados em rodovias redundará em fracasso. Mozart Rosa é alguém que mais que projetos, quer apresentar Planos de Negócios para o setor.

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