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Por Mozart Rosa e Thales Veiga

I – Os Barões do Café. Eles realmente existiram?

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Estudar e compreender a História das Ferrovias é por vezes uma tarefa inglória. Informações manipuladas, deturpadas, mal interpretadas, interpretadas de forma ideológica e/ou tendenciosa… essa é a realidade do estudo da História do Brasil e da História das Ferrovias. Um desses grandes erros é chamar os empresários, principalmente os paulistas que construíram as ferrovias, de Barões do Café. O mais correto e adequado seria chamarmos esses homens de Barões das Ferrovias.

O café é uma cultura em que de seu plantio a sua colheita leva-se um período de vinte e quatro meses.
Esse pequeno detalhe é desconsiderado ou desconhecido por grande parte dos historiadores.
Quem seria insano a ponto de construir uma ferrovia para transportar apenas café?

Fonte: Elfi Kürten Fenske

As Ferrovias começam no Brasil em 1854 com a construção da “Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro de Petropolis”, mais conhecida por Estrada de Ferro Mauá. Irineu Evangelista de Souza, o Barão e Visconde de Mauá, não construiu essa ferrovia como muitos professores de história dizem: “para o Imperador e a Côrte poderem subir a serra no calor”.

Trem auxiliando a construção da EF Príncipe do Grão-Pará, expansão e sucessora da EF Mauá, em 1882
Fonte: Brasiliana Fotográfica

Petrópolis era um grande entreposto comercial e, além da família Imperial e diversos outros nobres que possuíam chácaras na região, tinha produção agrícola em seus arredores. Mauá construiu sua Estrada de Ferro para transportar cargas e passageiros e assim ganhar dinheiro. Criou-se ali um padrão operacional de transporte misto de cargas e passageiros copiado por todos, inclusive posteriormente pela Leopoldina, e que durou mais de 80 anos.

Trem Misto da Companhia Carris de Ferro Itatibense,
Acervo: Leandro Guidini

Notícias corriam rápido, mesmo naquela época. Quando o nascente empresariado brasileiro, na ocasião composto essencialmente de fazendeiros, começa a ouvir falar da implantação da Estrada de Mauá e dos lucros elevados que ele estava tendo imediatamente criou-se, entre a elite econômica, um alvoroço e um interesse incomum no assunto. Todos passaram a querer ter a sua ferrovia.

Palácio da Bolsa Official de Café, em Santos-SP
Foto: Eduardo (‘Dado’) em 2018

Mauá tinha uma Casa Bancária em Santos. Quando fala para seus clientes, em sua maioria fazendeiros do sucesso, de sua ferrovia no Rio de Janeiro despertou a partir dali interesse em construírem ferrovias desbravando o interior paulista. Os interesses eram cargas gerais e passageiros. E o café. O Café não foi o motivo principal, fazia parte dos interesses e carga a ser transportada.

Recibo de transporte da Fábrica Petropolitana de Tecidos, em Cascatinha, datado de 1891.
Fonte: Antiguidades Casa do Velho

Isso ajudou a desenvolver o interior de São Paulo. A ferrovia possibilitou levar para o interior espelhos, vidros, banheiras e outros itens impossíveis de serem transportados por tropeiros ou carruagens. Isso mudou toda a dinâmica de ocupação do interior paulista. Esse tipo de mimo possibilitou ao fazendeiro levar esposa e filhos para morarem nas fazendas. Deu conforto a seus familiares. A dinâmica de ocupação e desenvolvimento do interior paulista mudou completamente de um puro extrativismo para local de moradia, desenvolvendo assim as cidades.

Fazenda de Café em Araraquara em 1902
Foto: Guilherme Gaensly

Presidente Prudente, Jundiaí, Araraquara, Bauru, só para citar algumas cidades, cresceram e se desenvolveram graças às ferrovias. O mesmo aconteceu no Rio de Janeiro e em Minas Gerais onde as cidades cortadas pelas ferrovias se desenvolveram mais que as outras que não tiveram esse privilégio.

Deveríamos chamar esses homens de Barões das Ferrovias, e não de Barões do Café.

A partir daí, aos trancos e barrancos a construção da malha ferroviária nacional começa a tomar forma, mas sempre com a participação intensiva do empresariado via emissão de títulos.

  1. Pedro II é subestimado pela nossa historiografia oficial mas foi um homem de extrema visão, pois enxergou na ferrovia um grande fator de integração e desenvolvimento nacional e criou mecanismos de incentivo à construção de ferrovias. Vários grupos então se uniram para essa construção, lamentavelmente nem todos com capacidade técnica, gerencial e visão de negócio. Isso resultou em várias estradas de ferro com grandes erros de projeto, traçados sinuosos e problemas técnicos e financeiros. Algumas dessas ferrovias faliram já no nascedouro. A Estrada de Ferro Maricá hoje cantada em prosa e verso pelos saudosistas foi um exemplo de estrada mal construída. A E.F. Oeste de Minas é outro exemplo: como comentado por muitos foi uma lambança generalizada. Salvam-se algumas entretanto, entre elas a Mogiana e a Paulista. Na realidade a maioria das ferrovias Paulistas tem um histórico de eficiência.

Esse fato explica a enorme quantidade de fusões, aquisições e incorporações no setor ferroviário no decorrer dos anos.

Estação Calaboca da EF Maricá, na Serra homônima.
Nesse trecho sinuoso os trens nem sempre conseguiam subir a rampa íngreme para vencer a Serra.
A construção de um túnel resolveria o problema.

Foto: Cleiton Pieruccini

Nem tudo foi um desastre porém. Eficiência na construção existiu sim, sempre associada a nomes como os Irmãos Rebouças, Feliciano de Aguiar, Paulo de Frontin que foi um verdadeiro gênio, Carlos Morsing que foi outro engenheiro brilhante, dentre outros. Com o passar dos anos vários problemas aconteceram e algumas ferrovias que fracassaram foram encampadas pelo estado. A antiga EFCB pode ser considerada nossa primeira estatal, pois foi encampada pela Coroa devido a problemas financeiros, pois a subida da serra consumiu todo o seu capital, uma obra de vanguarda na época feita por um de nossos grandes engenheiros: Cristiano Ottoni.

Um dos túneis da Linha do Centro da EF Dom Pedro II/Central do Brasil na Serra do Mar
Foto: Eduardo (‘Dado’) em 2018

Na época em muitos trechos o pensamento era guiado por visões de futuro limitadas. Aquele túnel a ser perfurado ou aquela ponte a ser construída, que permitiriam velocidades mais elevadas e tempos de percurso menores, dificilmente eram construídos, sendo descartados.

Construir ponte, furar túnel? Para que? Contorna o morro.
Velocidades maiores? Para que? “Muito vento faz mal às pessoas, elas não vão se adaptar”, dizia o proprietário de ferrovia da época (pesquisem jornais daquela época).
Menor tempo de viagem para que? Para que a pressa?

Isso gerava, entre outras coisas, velocidades médias baixíssimas para os dias de hoje mas satisfatórias para a época.

E quando uma situação tem possibilidade de piorar, acreditem sempre piora, existiam várias bitolas que não se comunicavam: 1,60m, 1,10m, 1,00m, 0,76m … essa última ainda subsiste como trem de turismo em Ouro Preto operada pela Vale do Rio Doce.

A Estrada de Ferro Rio-Minas, em bitola de 1,00 m, parou em Cruzeiro-SP nunca chegando ao Rio de Janeiro e sem a possibilidade futura de se conectar com a Estrada de Ferro Central do Brasil, em bitola de 1,60 m. É preciso entender isso pois essas ferrovias, mesmo construídas de qualquer jeito, foram na ocasião fundamentais para o desenvolvimento do Brasil.

Túnel ferroviário da Estrada de Ferro Rio-Minas
Fonte: Marc Ferrez (1895)

Pelo seu aspecto monopolista construir ferrovia naquele período provavelmente foi o negócio mais lucrativo da história do Brasil, pois investia-se pela certeza do retorno sem nenhuma preocupação com eficiência. Durante o período em que reinou sozinha, a ferrovia fez fortunas. Todos queriam ter a sua.

Mesmo com todos os problemas as ferrovias foram fundamentais e fator indutor no desenvolvimento do Brasil, principalmente nos três estados da região sudeste onde mais prosperaram: Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Desbravaram o interior e foram responsáveis pela consolidação de muitas localidades, que com a queda das ferrovias decaíram também. Santa Maria Madalena, Leitão da Cunha, Casimiro de Abreu entre outras.

Imóvel abandonado próximo a estação de Arcádia, em Miguel Pereira. Com a desativação da ferrovia este local, como diversos outros, praticamente sumiu do mapa e seus habitantes migraram para outras regiões mais assistidas de recursos e transporte.
Foto: Eduardo (‘Dado’) em 2013

É imenso o número de cidades principalmente no Interior do Rio de Janeiro de Minas Gerais que decaíram com a extinção do trem e que até hoje não se recuperaram. As cidades e localidades citadas acima são apenas algumas.

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Agradecemos a leitura, e até a próxima !

Imagem destacada: Folha de São Paulo

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Autor

  • Mozart Fernando

    Engenheiro Mecânico formado pela Faculdade Souza Marques em 1992, foi secretário-geral da AFTR no mandato 2017-2020 e atualmente ocupa o cargo de diretor-técnico da instituição. Iniciou sua carreira profissional em 1978 trabalhando com um engenheiro que foi estagiário da RFFSA entre 1965 e 1966. Esse Engenheiro durante esse período trabalhando no setor de cremalheiras acompanhou o desmonte da E.F. Cantagalo e conhecia diversas histórias envolvendo o desmonte da Ferrovia de Petrópolis realizado pela mesma equipe. Histórias que muitos preferem esquecer. Parte dessa convivência extremamente valiosa está transcrita nos textos publicados pela AFTR. Não se considera um “especialista” em ferrovias, outra palavra que hoje no Brasil mais desmerece do que acrescenta. Se considera um “Homem de Negócios” e entende que o setor ferroviário só terá chance de se alavancar quando os responsáveis por ele também forem homens de negócios. Diferente de rodovias, as ferrovias são negócios. E usar para ferrovias os mesmos parâmetros balizares de construção e projeto usados em rodovias redundará em fracasso. Mozart Rosa é alguém que mais que projetos, quer apresentar Planos de Negócios para o setor.

One thought on “A Ferrovia e suas histórias desconhecidas I – Os Barões do Café realmente existiram ?

  1. Parabéns, Mozart! Lindo trabalho, desvendando não apenas pontos da nossa história, obscuros, mas também, nos proporcionando conhecimento sobre os empecílhos e luzes a respeito das nossas ferrovias. Saudades das viagens realizadas nos vagões de passageiros da antiga FEPASA, que nos levavam à São Paulo.
    Agradeço pelo primeiro módulo e ficaria grata, se me enviasse os seguintes.
    Tania Gottardi

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