Tempo de leitura: 9 minutos

Por Mozart Rosa

Como já mostrado em diversas postagens da AFTR o encerramento de diversos serviços de passageiros, e também de diversos tipos de cargas, nada teve a ver com a intervenção externa. No caso, como as teorias da conspiração sugerem com a intervenção dos empresários de ônibus ou de transporte de cargas, foram decisões internas da RFFSA e os diversos motivos aparecem em várias de nossas postagens.

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Um motivo até agora não apresentado por nós, mas bem relevante, se refere às prioridades de transporte. Este é o assunto dessa postagem e que apresentaremos abaixo.

Desejamos a todos uma boa leitura !


Com o passar dos anos a RFFSA adquiriu um tal gigantismo que era preciso dar um ordenamento coerente ao transporte de seus produtos. Daí foi criada uma tabela de prioridades em função do tipo de carga transportada. Prioridade de passagem significava que as cargas de prioridade menor (em número, mais acima na tabela) tinham prioridade de passagem sobre as de prioridade maior (em número maior). Ou seja, a prioridade nº1 tinha mais prioridade sobre a de nº2, a prioridade 2 sobre a 3 e assim por diante.

Trem de transporte de graneis da RFFSA em local e data desconhecidos
Fonte: Acervo pessoal Benício Guimarães (AENFER/AFTR)

Não é de nosso conhecimento quando essa tabela foi criada e qual a sua totalidade, as informações que prestaremos resulta de conversas com ferroviários aposentados. Esses ferroviários a partir de lembranças nos forneceram a tabela abaixo. A certeza que temos é apenas em relação aos itens 1, 2, 3, 6 e o último. Caso alguém a tenha em sua totalidade por favor nos envie. Desde já agradecemos, obrigado.

Abaixo a tabela:

  1. Carga Viva
  2. Laticínios
  3. Passageiros
  4. Desconhecido
  5. Desconhecido
  6. Combustíveis
  7. Desconhecido
  8. Desconhecido
  9. Graneis Ferrosos

Por Carga Viva, prioridade 1, entendemos Gado; e na última posição da tabela prioridade 9 temos graneis, no caso Minério de Ferro. Na ocasião produtos agrícolas e fertilizantes ainda não tinham o peso e a importância que tem hoje. Observem ainda que curiosamente o produto mais lucrativo, nas operações da RFFSA na época, ficava em última posição nas prioridades de transporte.

Trem com vagões de transporte de material inflamável
Fonte: Internet

E o que isso significava? Para que isso servia? A maioria das ferrovias fora da área urbana e focadas em cargas era normalmente em linha singela, ou seja, apenas uma linha. Diferente do que as pessoas costumam ver nas linhas de subúrbio do Rio onde temos quatro linhas (e em alguns trechos até seis linhas) em paralelo no trecho Deodoro x Central, e duas linhas nos trechos Deodoro x Japeri e Deodoro x Santa Cruz. Portanto essa tabela de prioridades era importante para definir quem passaria primeiro por uma linha para chegar primeiro ao seu destino.

Trem Série 100 passando próximo a Cascadura, no trecho de linhas sextuplas da Linha do Centro da EFCB
Fonte: Metropolitan Wickers Museum of Sciense and Industry (via site Estações Ferroviárias)

Essa é uma explicação tosca e primária, mas esperamos ajudar a explicar aos leigos e interessados no assunto como funcionava essa escala.

Vagão da Companhia Acucareira Vieira Martins na Usina Santa Florência, em Ponte Nova-MG
Fonte: Internet

A título de curiosidade Carga Viva era Prioridade 1 porque o gado depois de muito tempo confinado pode ficar nervoso e destruir com coices os vagões. Era preciso celeridade na entrega, que preferencialmente era feita à noite. Laticínios, normalmente leite mas também seus derivados, precisavam ser entregue com rapidez para não se deteriorarem. E Passageiros tinham compromisso com horário, principalmente. Graneis tinha a última posição por ser algo inerte. Portanto o produto cujo transporte era o mais lucrativo da RFFSA, ou melhor, o único a dar sempre lucro, tinha na ordem de prioridades a última posição. Perdendo nessas paradas precioso tempo de viagem.

Vagão de transporte de leite da cooperativa de produtores de leite de São João Nepomuceno-MG
Fonte: Internet

Existe disponível no Youtube um documentário sobre ferrovias feito com imagens do Globo Repórter, onde a apresentadora Gloria Maria viaja de trem e, curiosamente, mostra uma dessas situações em que um trem de minério espera a passagem de um trem de passageiros.

Cruzamento de trens de carga geral com o de passageiros da Cia. Vale, próximo a Antonio Dias-MG
Fonte: Leandro R Barbosa (Youtube)

Além da tabela de prioridades, outros motivos embasaram o encerramento do transporte de passageiros e cargas gerais. Na mudança do vapor para o diesel, ao padronizar suas locomotivas em locomotivas de grande porte especificas para graneis, a RFFSA inviabilizou o transporte de todos os outros tipos de carga tirando deles toda a lucratividade. E além da lucratividade não podemos esquecer a absurda incompetência gerencial que destruiu operações lucrativas como a do trem de Petrópolis, entre outras.

Portanto a conjunção de vários fatores, onde aqui citamos três:

  • a tabela das prioridades;
  • a padronização das locomotivas visando graneis;
  • e a incompetência gerencial da RFFSA;

tirou toda a lucratividade do transporte de todos os outros tipos de carga que não fossem graneis. Mais uma vez o “Estilo ECFB de Ser” se impondo e deixando em segundo plano o “Estilo Leopoldina de Ser”.

Um trem de socorro com guindaste da RFFSA, em data e local desconhecidos (possivelmente Juiz de Fora-MG)
Fonte: acervo pessoal Benício Guimarães (AENFER/AFTR)

Ao assumir a presidência da RFFSA, Carlos Aloisio Weber, orientado por adeptos do estilo EFCB continua a dar andamento ao processo de extinção de linhas e produtos “deficitários”, recebidos de antigos diretores.

: : Entenderam os verdadeiros motivos do encerramento de diversas operações de transporte da RFFSA? : :

Trem da passageiros da RFFSA, possivelmente o que fazia o trajeto Ribeirão Vermelho x Barra Mansa
Foto: acervo pessoal Benício Guimarães (AENFER/AFTR)

Encerramento que acabou, entre outras coisas, com o funcionamento do Matadouro de Santa Cruz e o de Nilópolis por exemplo, desordenando toda a estrutura logística de fornecimento de carne fresca para diversas cidades. Este assunto já foi tema, inclusive, de uma de nossas postagens. E além do transporte de carga viva a RFFSA também encerrou as atividades fabris de diversos setores em diversas cidades do interior do Brasil especificamente de Minas Gerais, ou seja mais uma vez Minas Gerais sofrendo enorme prejuízo.

Trem da carga viva
Fonte: Internet

Hoje existe uma tabela de prioridades, elaborada pela ABNT, vejam abaixo essa tabela. A ordem prioridade é uma norma técnica, regulamentada hoje pela ANTT. Hoje ela é assim:

Art. 20. Os trens são licenciados de acordo com a seguinte ordem de prioridade:

  1. a) trens de socorro;
  2. b) trens urbanos;
  3. c) trens regulares e facultativos de passageiros;
  4. d) trens especiais de passageiros;
  5. e) trens mistos;
  6. f) trens que conduzam animais;
  7. g) trens que conduzam mercadorias perigosas ou perecíveis;
  8. h) trens de carga em geral;
  9. i) trens de serviço.”

Carro-restaurante de luxo da EFCB (F.Ringhaffer Swichow), um exemplo de trem especial
Fonte: acervo pessoal Benício Guimarães (AENFER/AFTR)

Um detalhe ignorado por muitas pessoas, em particular os defensores de projetos como o do Barrinha é o item “d”: Trens especiais de Passageiros. Observem também o item “g”: Trens de Carga Geral, ou seja, passageiros continuam a ter prioridade sobre carga. No caso do Barrinha o projeto é uma ideia de certa forma inaplicável pois não se trata apenas de colocar um trem de passageiros no trecho, se trata de colocar no trecho um trem de passageiros com uma quantidade ínfima de passageiros que terá prioridade sobre os trens de carga, o que em caso de problemas com o trem de passageiros colocará em risco o cumprimento de contratos milionários do transporte de graneis. Infelizmente é a verdade, não há o que se negar.

Trem Barrinha passando por um túnel da Serra do Mar em 1992
Foto: acervo pessoal Benício Guimarães (AENFER/AFTR)

Além disso há o fato da MRS logística já ter deixado claro o total desinteresse em operar este serviço (no caso, o Barrinha), ficando a responsabilidade de operação e manutenção para seus idealizadores, que infelizmente não tem recursos para tal. Não adianta querer impor à concessionaria de carga essa operação, seria algo como entrar na casa de um desconhecido e se servir da geladeira sem ser convidado. E o contrato de concessão é bem claro em relação a isso. Caso o contrato seja modificado e se equipare ao que vigora nos trens da Cia.Vale (que opera o trem de passageiros Vitória x Minas), aí é outra história.

Falando nisso: uma modelagem viável do Barrinha, bem como de outros trechos, já foi feita pela AFTR. Mas é um assunto para uma outra postagem, em breve.

 

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Agradecemos a leitura. Até a próxima !

(A opinião constante deste artigo é de inteira responsabilidade do autor, não sendo, necessariamente ou totalmente, a posição e opinião da Associação)

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Autor

  • Mozart Fernando

    Engenheiro Mecânico formado pela Faculdade Souza Marques em 1992, foi secretário-geral da AFTR no mandato 2017-2020 e atualmente ocupa o cargo de diretor-técnico da instituição. Iniciou sua carreira profissional em 1978 trabalhando com um engenheiro que foi estagiário da RFFSA entre 1965 e 1966. Esse Engenheiro durante esse período trabalhando no setor de cremalheiras acompanhou o desmonte da E.F. Cantagalo e conhecia diversas histórias envolvendo o desmonte da Ferrovia de Petrópolis realizado pela mesma equipe. Histórias que muitos preferem esquecer. Parte dessa convivência extremamente valiosa está transcrita nos textos publicados pela AFTR. Não se considera um “especialista” em ferrovias, outra palavra que hoje no Brasil mais desmerece do que acrescenta. Se considera um “Homem de Negócios” e entende que o setor ferroviário só terá chance de se alavancar quando os responsáveis por ele também forem homens de negócios. Diferente de rodovias, as ferrovias são negócios. E usar para ferrovias os mesmos parâmetros balizares de construção e projeto usados em rodovias redundará em fracasso. Mozart Rosa é alguém que mais que projetos, quer apresentar Planos de Negócios para o setor.

2 thoughts on “As prioridades no transporte ferroviário

  1. Comentários sobre as prioridades dos trens:
    1 – Cargas vivas: O tempo passando no transporte, os novilhos vão perdendo peso, daí o fazendeiro vai perder dinheiro na hora que o gado é pesado quando chega no frigorífico.
    2 – Passageiros: fui usuário do trem noturno Vera Cruz (Rio-BH) na década de 1950. Essa prioridade valia enquanto o trem cumpria o horário! Quando, por vários motivos, o trem atrasava (digamos 20 minutos por exemplo) ele perdia a prioridade e ia para o fim da lista!!! Consequência: os atrasos se acumulavam… Teve uma vez que os atrasos totalizaram quase seis horas!!! Resultado: as baterias de cada carro não aguentaram (muito tempo parado) e se esgotaram. Resultado: o ar condicionado parou de funcionar!!! Foi um calorão danado (de dia, em pleno verão), pois os carros eram fechados, bem vedados mesmo, para maior eficiência do ar condicionado…

  2. Obrigado pelo seu comentário como coloquei essa lista foi passada de forma oral, mas suas informações corroboram o que publicamos, ajudou muito.

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