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Por Mozart Rosa

 

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A Indústria Automobilista, a Indústria do Petróleo e as Empresas de Ônibus
Elas tiveram algo com a derrocada do setor ferroviário?

A AFTR tem demonstrado ao longo do tempo com documentos que a derrocada das ferrovias no Brasil decorreu por conta da própria RFFSA, com seu gigantismo, sua incompetência, e a incapacidade do governo em controlá-la, além de interesses escusos de alguns de seus diretores visando mais interesses pessoais do que corporativos, um verdadeiro ninho de ratos.

Mesmo assim as lendas persistem.

Recentemente presenciamos uma pessoa afirmar com convicção que as ferrovias foram desmanteladas por lobby da indústria automobilística, da indústria do Petróleo e das empresas de ônibus. Novamente com fatos vamos dar algumas explicações.

Fonte: Classical Buses

Se chegarmos hoje a Brasília encontraremos, como determina a constituição, 513 deputados federais defendendo os interesses de seus estados. Teremos também pelo menos 1000 lobistas defendendo interesses de seus clientes. O lobby no Brasil, embora ainda não legalizado, é algo legitimo: grupos de pessoas defendendo os interesses de setores sociais, empresariais, econômicos, de cidades, e assim é a democracia. Obviamente existiram e existem lobbys defendendo a indústria automobilística, indústria do petróleo e das empresas de ônibus, bem como diversos outros setores. Mas daí a afirmar que esses lobbys foram preponderantes para o desmantelamento da RFFSA, ou que agiram nos bastidores em prejuízo da RFFSA, é tremenda ingenuidade. É desconhecer as entranhas da RFFSA, tudo o que aconteceu no setor, e os interesses que como titãs defenderam a manutenção do monopólio ferroviário.

Composição da Leopoldina, lotada e antiquada, comum nas décadas de 1950 e 1960
Fonte: Youtube

Monopólio esse que dentre muitas lambanças prejudicou a construção da linha 3 do metrô ligando São Gonçalo a Niteroi. Evento documentado e com personagens envolvidos ainda vivos hoje, para atestar a veracidade desses fatos.

Remoção de trilhos da Linha do Litoral em São Gonçalo, maio de 2011
Fonte: Trem de Dados (autor desconhecido)

Sem falar das situações de cunho interno visando esconder erros cometidos por alguns funcionários, que desmantelaram trechos como o de Petrópolis, entre diversos outros espalhados pelo Brasil, e a AFTR tem muita informação sobre isso.

Portanto, pessoal: muita calma nessa hora, por favor.

Outro sempre citado como responsável pelo enfraquecimento do setor ferroviário foi o presidente Washington Luiz com sua famosa frase: “Governar é abrir estradas”.

A Rodovia Rio-Petrópolis foi a primeira rodovia asfaltada inaugurada no Brasil, pelo presidente Washington Luís, em agosto de 1928.
Posteriormente esta rodovia foi batizada com o seu nome.
Fonte: Acervo O Globo

Entendam o seguinte: a abertura de estradas tem, inicialmente e na sua origem, função militar. Tem por objetivo ampliar fronteiras e usando-se a estradas para defendê-las.

Washington Luiz ao defender tal ideia teve uma visão correta de estadista, além do mais, ferrovia no Brasil sempre foi iniciativa do empresariado, vincular Washington Luiz a qualquer interferência nas ferrovias demonstra enorme desconhecimento de história do Brasil de quem defende essa tese.

Sobre Washington Luiz, a frase correta e completa é: “Governar é povoar; mas, não se povoa sem se abrir estradas, e de todas as espécies; governar é, pois, fazer estradas!”

Ele não se refere só às rodovias, se refere a todos os tipos de comunicação, e num contexto específico: o da colonização do interior de São Paulo. O “sertão” das “terras despovoadas” depois da “Bocca do matto”, como se falava.

Para concluir vamos falar dos vilões de sempre: os empresários de ônibus.

Olavo de Carvalho cita uma frase que é verídica e acontece frequentemente:

: : “Sucesso no Brasil é Ofensa Pessoal” : :

Para muitos ver aqueles homens, sendo alguns com pouquíssimo estudo, alcançarem o sucesso que alcançaram com mansões em Portugal, fazendas, diversas propriedades, dentre outras conquistas, foi algo bem “ofensivo”. Daí, na ausência de um vilão palpável para culpar pelo desastre do setor ferroviário, escolheram os empresários de ônibus.

Fonte: Revista Portal do Ônibus

Todo boato é uma verdade provisória que, por sua vez, produz realidades. Essa frase é assustadora, depois que o boato é disseminado e adquire a aura de verdade, fica praticamente impossível desmenti-lo. É assim com o boato envolvendo os empresários do Ônibus.

Vamos apresentar alguns fatos, e não boatos.

Data de fundação das principais empresas de ônibus atuando hoje no Sudeste:

Itapemirim 1953
Águia Branca 1946
Expresso Brasileiro 1941
Viação 1001 1948

Entre sua fundação e até o final da década de 1960 essas empresam foram tendo um crescimento pífio (consultem balanços e estatísticas), tendo o pico de crescimento começando a partir do início da década de 1970. Transpor assim para a década de 1960 a força política e econômica que esses empresários detêm hoje é um pouco de exagero e fantasia.

Fonte: Arquivo Nacional

Essas empresas começam efetivamente a crescer a partir do início da década de 1970, se beneficiando dos vultosos investimentos feitos na melhoria das estradas a partir da década de 1960 pelos governos do regime militar. Para as empresas de transporte rodoviário de passageiros existirem e crescerem, é preciso que existam estradas e postos de serviço ao longo dessas estradas.

E isso só começa a se espalhar pelo Brasil depois de 1964.

A Rodovia Washington Luiz apesar de construída quase na década de 1930, só foi duplicada na década de 1980. A Rodovia Presidente Dutra foi construída na década de 1950, mas só começa a ser duplicada a partir de 1967. A Rede de postos Graal, foi fundada em 1974. Postos de gasolina em estradas só começam a ser construídos em quantidade a partir da década de 1950, anteriormente só existiam dentro das cidades.

E além disso, para existirem empresas de transporte rodoviário, são precisos ônibus. A Marcopolo, hoje uma das maiores fabricantes de ônibus do Brasil, apesar de ter sido fundada em 1949, só começa a fabricar ônibus como hoje os conhecemos a partir de 1960. A Ciferal foi fundada em 1955. A Caio foi fundada em 1945, tendo fabricado e fornecido os primeiros ônibus jardineira usados pela Itapemirim.

Caio Jardineira, Veículo com capacidade para 22 passageiros.
Créditos na imagem

Comparar os veículos fabricados hoje por essas empresas, com os veículos fabricados por elas quando de sua fundação, é como comparar TVs preto e branco a válvula, com as modernas Smart TV.

Ônibus apelidado de “King-Kong”, um modelo introduzido pela Companhia Geral de Transportes, uma subsidiária da São Paulo Railway. A mecânica era inglesa, de marca Thornycroft, e a carroceria era da Grassi de SP. Fazia o trajeto entre São Paulo e Santos, 1933.

Dinossauro Flecha Azul, da Viação Cometa
Fonte: Gazeta do Povo

O primeiro Dinossauro da Cometa, um verdadeiro ícone do setor, apareceu apenas em 1972. Por isso repetimos: esses empresários só começam a ter a força política e financeira que tem hoje a partir da década de 1970.

E o que aconteceu? E o que se fala?

Recentemente em um debate nas páginas da AFTR um cidadão de 36 anos defendia com veemência a tese de que as empresas de ônibus foram responsáveis – sim – pelo sucateamento do setor ferroviário da década de 1960, ele estava lá e viu.

: : Marty Mcfly comentando nas páginas da AFTR, que glória, que honra ! : :

Cena do filme “De Volta para o Futuro”, do personagem Marty McFly interpretado por Michael J.Fox
Fonte: Amblin Entertainment/Universal Pictures

Compareçam aos guichês da Rodoviária Novo Rio (agora Rodoviária do Rio) entre 23:00h e 0:00h e confiram: são disponibilizadas pelas diversas empresas que fazem a ligação Rio x São Paulo mais de 800 assentos em diversas configurações e horários para o trajeto Rio x São Paulo. Isso só nesse horário, sem falar nos outros. Alguém realmente acredita que eles moveriam céus e terras para acabar com o transporte ferroviário Rio x São Paulo que oferecia não mais de 120 bilhetes? Diariamente?

Publicidade de 1958 anunciando as viagens ferroviárias Vera Cruz (Rio x Belo Horizonte) e Santa Cruz (Rio x São Paulo)
Fonte: Blog Anos Dourados

Lembrando para quem não sabe: a Auto Viação Útil fez parte do grupo que operou até 1998 o Trem de prata que saia da Leopoldina.

Fonte: Revista Veja

Em toda essa equação ficou faltando falar de um personagem importantíssimo: o Coronel Carlos Aloysio Weber que assumiu a presidência da RFFSA na década de 1970 com o objetivo de controlar o monstro. Uma empresa na ocasião com mais de 100.000 funcionários, gigantesca e ineficiente. Suas ações, extinguindo operações deficitárias de passageiros, jogaram no colo de várias empresas rotas bem interessantes.

Vejam nossa postagem:

>> O Motivo do fracasso das ferrovias no Brasil

Curiosamente, e poucos sabem disso, empresas de ônibus como a Águia Branca, quando ainda bem pequenas, foram incentivadas a absorver pequenas rotas da Estrada de Ferro Leopoldina, no Espírito Santo e no interior de Minas Gerais, que pelo constante prejuízo, vinham sendo sucateadas. Outra informação pouco comentada é de que engenheiros da RFFSA eram incentivados a conseguir motivos para extinguir linhas deficitárias, para assim ganharem promoções e bônus. Moradores antigos de Cruzeiro-SP, conhecem bem essas histórias que culminaram com a extinção da linha ligando a cidade a São Lourenço-MG.

A bela estação de Cruzeiro-SP em 1908
Fonte: Resgatando cidades

E já que falamos tanto sobre empresas de transporte rodoviário de passageiros, lembremos também sobre empresas rodoviárias de transporte de carga. A Transporte São Geraldo, empresa ainda existente, bancou em parceria com a RFFSA a construção do TSG – O Terminal São Geraldo, o primeiro terminal rodoferroviário do Brasil construído às margens da Rodovia Presidente Dutra e hoje operado pela MRS.

Propostas da AFTR para o Transporte Regional de Passageiros

Transpondo para os dias atuais, em bases modernas, lucrativas e mais eficientes, o transporte de passageiros pelas ferrovias, a AFTR defende o uso de VLTs a Diesel produzidos pela Bom Sinal e pela Marcopolo, coincidentemente a maior fábrica de carroceria de ônibus do Brasil e que atende milhares de empresas rodoviárias do país (viram isso, teóricos da conspiração?).

Abaixo link de postagem da AFTR sobre o tema:

>> A volta dos Trens Regionais de Passageiros no Brasil, proposta AFTR para o tema

E por que elas apoiariam tais ideias? Um VLT a diesel consome o mesmo que um ônibus rodoviário, mas não gasta pneu e nem suspensão como o ônibus e transporta o DOBRO de pessoas. O empresário de ônibus, em essência, só busca fazer uma única coisa: transportar gente. Em ônibus ou em qualquer meio de transporte que puder. Nenê Constantino empresário, dono de várias empresas, dentre elas a empresa Pássaro Marron, e correspondente paulista do Jacob Barata, montou a Gol, conhecida e bem sucedida empresa de aviação.

Ônibus da empresa Pássaro Marron, mais uma empresa que fazia a ligação Rio x São Paulo, em 1950.
Acervo Adamo Bazani

Essa visão, transformando esses empresários em vilões de HQ, provoca enorme prejuízo quando se pensa em reativar trechos ferroviários para transporte de passageiros. A primeira ação dos responsáveis pelo projeto é encontrar maneiras de excluir o empresário do ônibus sob a alegação de que ele será contra. E assim o negócio não sai do papel pela ausência de gente especializada no transporte de pessoas na elaboração do projeto. Vide o Metrô de Macaé, entre outros fracassos espalhados pelo Brasil.

>> Projetos inadequados e suas aplicações equivocadas: o Metrô de Macaé

Negócios são negócios, algo que pessoas envolvidas em tais projetos e oriundas do serviço público, onde resultados normalmente não são cobrados, não sabem o que é.

Para encerrar, e trazendo à baila a frase do início do texto onde alguém afirmava que “A indústria do Petróleo fez Lobby para acabar com as ferrovias”, tirando as ferrovias eletrificadas dos trens de subúrbio operando nos grandes centros, as locomotivas a diesel são movidas a que?

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Agradecemos a leitura. Até a próxima !

(A opinião constante deste artigo é de inteira responsabilidade do autor, não sendo, necessariamente ou totalmente, a posição e opinião da Associação)

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Autor

  • Mozart Fernando

    Engenheiro Mecânico formado pela Faculdade Souza Marques em 1992, foi secretário-geral da AFTR no mandato 2017-2020 e atualmente ocupa o cargo de diretor-técnico da instituição. Iniciou sua carreira profissional em 1978 trabalhando com um engenheiro que foi estagiário da RFFSA entre 1965 e 1966. Esse Engenheiro durante esse período trabalhando no setor de cremalheiras acompanhou o desmonte da E.F. Cantagalo e conhecia diversas histórias envolvendo o desmonte da Ferrovia de Petrópolis realizado pela mesma equipe. Histórias que muitos preferem esquecer. Parte dessa convivência extremamente valiosa está transcrita nos textos publicados pela AFTR. Não se considera um “especialista” em ferrovias, outra palavra que hoje no Brasil mais desmerece do que acrescenta. Se considera um “Homem de Negócios” e entende que o setor ferroviário só terá chance de se alavancar quando os responsáveis por ele também forem homens de negócios. Diferente de rodovias, as ferrovias são negócios. E usar para ferrovias os mesmos parâmetros balizares de construção e projeto usados em rodovias redundará em fracasso. Mozart Rosa é alguém que mais que projetos, quer apresentar Planos de Negócios para o setor.

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