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Por Mozart Rosa

O Gordini e as locomotivas a vapor. O que ambos têm em comum?

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Quem se lembra do Gordini? Provavelmente muitos tiveram um pai ou um avô que teve um, mas mesmo que nenhum parente próximo ou afastado tenha tido um Gordini, provavelmente a maioria já ouviu falar e sabe do que se trata. Pois bem, tente encontrar peças de Gordini atualmente no mercado. É algo praticamente impossível hoje em dia. Não se fabricam Gordinis desde a década de 60. Peças são ítens raros e caros, novas praticamente impossível, usadas talvez. Quem ainda tem um funcionando liga apenas uma vez por semana e o mantém guardado, escondido, como um tesouro imaculado a ser preservado.

Fonte: Arquivo Pessoal

Tente também levar aquele seu eletrodoméstico de estimação que deu defeito, aquele eletrodoméstico que já tem mais de 10 anos para conserto. Ele não tem mais conserto, Você não encontrará peças. Deu para entender que coisas antigas assim devem ficar guardadas sendo admiradas e não colocadas em uso e que quando apresentam defeito é difícil consertar, achar quem conserte ou simplesmente não tem conserto?

Fonte: O Mercador Leilões

Pois vamos aos trens.

Na década de 1920 surgem as primeiras locomotivas a diesel. Possuindo maior potencia, melhor rendimento, maior eficiência, menor risco na operação e melhor forma de alimentação do combustível (extingue-se assim a função de foguista das locomotivas a vapor) elas passam a dominar o mercado. Lentamente o mundo começa a migrar gradativamente para as locomotivas a diesel, mas no Brasil não foi bem assim.

Locomotivas diesel FA1 (populares e queridas “Biribas”) embarcadas em navio, uma encomenda da EFCB no final da década de 1940.
Fonte: Arquivo Nacional (via Alex Elias Ibrahim)

As empresas passaram a comprar as locomotivas a diesel para modernizar suas frotas, pois locomotivas a diesel possuíam e possuem maior rendimento.

Como assim?

O rendimento é uma grandeza adimensional dada pela razão entre a quantidade de trabalho mecânico extraído de uma máquina térmica e a quantidade de energia fornecida a ela em forma de calor.

Ok. E daí?

Ferrovias começaram na Inglaterra, um pais com fartas reservas de carvão e com elevadas Kcal, ou seja, quando queimado gerava muita energia, mais do que a madeira, e mais do que o carvão existente no Brasil. Além de ser a melhor forma de geração de energia disponível na época.

Réplica da primeira locomotiva a vapor em operação comercial no mundo: a Rocket
Fonte: The Board of Trustees of the Science Museum

Kcal… lembrou o que significa? Significa quilocaloria, uma unidade de medida de energia produzida por determinado produto. O diesel tem uma quantidade de Kcal diferente do álcool, diferente da gasolina e diferente do querosene. O carvão tem menor capacidade calórica que o diesel, portanto o rendimento das locomotivas a vapor era menor que o das locomotivas a diesel. Esta é uma explicação básica para leigos, conhecedores do assunto por favor não venham com objeções 😉.

Locomotiva diesel-elétrica ALCO RS-3 em bitola larga comprada pela EFCB em 1952
Fonte: Raymond Marsh (Australia)

Ou seja, era bem mais lucrativo operar com locomotivas a diesel que além de tudo isso, ainda eram mais potentes.

Mas vejam que interessante: em qualquer foto mostrando ferrovias brasileiras da década de 1960, como:

  • Estrada de Ferro Rio D’Ouro.
  • Estrada de Ferro Petrópolis.
  • Estrada de Ferro Cantagalo.

Todas elas, dentre outras, eram ferrovias em bitola métrica e (coincidência?) vemos em operação sempre locomotivas a vapor, diferente de fotos de trechos em bitola larga da mesma época onde vemos que imperavam as locomotivas a diesel. Alguém sabe o motivo disso?

Locomotiva a vapor da EF Rio d’Ouro operando em meados da década de 1960, pouco antes da desativação da ferrovia.
Foto: Guido Motta (provavelmente)

Locomotivas a vapor, que na ocasião praticamente todas já tinham no mínimo 60 anos de idade – ou seja, tempo de operação suficiente para sua aposentadoria que já deveria ter sido feita há muito tempo – continuavam operando normalmente.

Será que é coincidência?

Não, não era, e nunca foi coincidência. Qualquer historia policial chinfrim mostra que coincidências não existem e se recomenda seguir o dinheiro. Seguindo o dinheiro, e para isso basta ver os balanços da R.F.F.S.A, vemos que as linhas em bitola métrica não recebiam investimentos visando a sua modernização, enquanto que as linhas em bitola larga egressas da E.F.C.B. sempre tinham tudo do bom e do melhor. Mais um reflexo da Guerra das Bitolas, sempre citada aqui em nossas postagens e não comentada por praticamente ninguém.

Uma moderna locomotiva a diesel EMD SD18 em Santos Dumont-MG no ano de 1988, fruto de um
investimento em trens de bitola larga feito pela RFFSA entre os anos de 1961 e 1963.

Fonte: Coleção Benício Guimarães/AFTR

A R.F.F.S.A. deliberadamente destinava todos os seus recursos para a Bitola larga, fossem maquinas ou outros equipamentos, sucateando deliberadamente as linhas de bitola métrica.

Sigam o dinheiro e encontrem a resposta !

O Sr. Santoro, ex-resgatista da Leopoldina hoje aposentado e com 86 anos, em diversas conversas dizia da qualidade e da quantidade ruim de equipamentos com que trabalhava, em comparação com os equipamentos usados por profissionais que tinham a mesma função que a sua, mas que trabalhavam em linhas da E.F.C.B.

Pátio da estação Barão de Mauá, Estrada de Ferro Leopoldina (EFL).
Apesar de alguns investimentos feitos, até os equipamentos de operação, sinalização e circulação utilizados nas ferrovias em bitola métrica eram antiquados e obsoletos, apesar de ainda funcionais. Diferente do que ocorria nas linhas da EFCB, em bitola larga, com equipamentos modernos.
Fonte: Arquivo Nacional

Para a turma da Leopoldina, tudo era precário, da manutenção da via passando pela manutenção das locomotivas, também a via permanente (trilhos) ruim provocavam diminuição de velocidade. Na manutenção das locomotivas gambiarras eram algo comum, o que provocava diversos acidentes.

Acidente na EF Leopoldina em 1959
Fonte: Biblioteca Nacional (Jornal A Luta Democrática)

Estamos falando de alguém que trabalhou exercendo sua função nas décadas de 1960, 1970 e parte da década de 1980 e conhecia muito bem a qualidade e as condições do material disponível. Portanto ao olhar fotos antigas de ferrovias brasileiras não fique admirando e achando fofo aquelas locomotivas a vapor ainda em operação na década de 1960. A situação não era nem um pouco charmosa pois, em sua condição precária de funcionamento, estavam expondo, e muito, a vida dos usuários.

Mesmo nas linhas encampadas pela EFCB a situação não era das melhores. Mas, claro: notem que essa precariedade só ocorria nas linhas em bitola métrica e, que “coincidência”, ainda operando com locomotivas a vapor.

Parte do fracasso do retorno de muitos trechos ferroviários com pretensão turística se dá, pela insistência dos que estão à frente do projeto, em insistir para que dentro do processo de reativação sejam usadas locomotivas a vapor, que originalmente já eram mantidas de forma precária e que hoje, assim como o Gordini, não tem peças para manutenção ou reposição. Pouquíssimas pessoas ou instituições no Brasil tem capacidade técnica para fazer a manutenção adequada de locomotivas a vapor. E todos são unânimes em falar das dificuldades disso.

Vamos deixar claro para o público em geral, mas também para o grupo de muitos que hoje militam a favor da retomada do setor e para a implantação de trens turísticos, sendo que desse grupo fazem parte vários profissionais egressos da RFFSA de cargos gerenciais e, como já mostrado anteriormente, uma massa de engenheiros civis: a realidade é a seguinte. E acordem para essa realidade !

As locomotivas a vapor, ou as Vaporosas como carinhosamente a turma às chama, ainda existentes no Brasil eram sucatas sobre rodas. Andavam graças à misericórdia divina e ao empenho pessoal de alguns funcionários. Inclusive do Sr. Santoro, um desses funcionários abnegados. Uma situação bem diferente das locomotivas a vapor dos Estados Unidos ou de países da Europa, que tinham manutenção preventiva primorosa.

A situação atual no Brasil é a seguinte:

  • Não existem peças de reposição.
  • Não existem desenhos originais.
  • Não existe quem fabrique peças.
  • E quando existe, tudo é feito na base da tentativa e erro.

Dúvidas?

Convido a quem quiser refutar ao exposto no texto, a parte que falamos sobre manutenção de locomotivas, a conversar com o Sr. Bruno Sanches, presidente da ABPF (Associação Brasileira de Preservação Ferroviária) de Cruzeiro-SP. Uma das maiores autoridades em locomotivas a vapor do Brasil.

Foto: ABPF

A ABPF de Cruzeiro-SP, bem como a Cia.Vale que opera o trem de Ouro Preto e outras poucas empresas pelo Brasil que utilizam Vaporosas tiveram um grande trabalho de desmontagem e remontagem das máquinas, bem minucioso, muito antes do início da operação anos atrás. Não foi um oba-oba ou uma coisa simples que muitos hoje, que não acompanharam todo esse trabalho e pegaram as coisas já prontas e funcionando, fazem querer crer.

Portanto não caiam no conto da sereia, usado por quem defende tais projetos. Mesmo outros países que cuidavam de suas locomotivas quando em operação comercial há décadas atrás hoje tem dificuldades de mantê-las, pois não é tão simples, charmoso ou glamouroso como aparentam ser quando vemos as belas vaporosas desfilando faceiras pelos trilhos. É preciso conhecer do assunto e ser bastante responsável e cuidadoso ao propor projetos e/ou assumir determinadas ações ou operações.

Acidente com uma locomotiva a vapor em Bernardino de Campos, São Paulo
Fonte: Biblioteca Nacional (via Hérico J. Rechi )

Além disso réplicas são uma boa opção e bem mais seguras.

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Autor

  • Mozart Fernando

    Engenheiro Mecânico formado pela Faculdade Souza Marques em 1992, foi secretário-geral da AFTR no mandato 2017-2020 e atualmente ocupa o cargo de diretor-técnico da instituição. Iniciou sua carreira profissional em 1978 trabalhando com um engenheiro que foi estagiário da RFFSA entre 1965 e 1966. Esse Engenheiro durante esse período trabalhando no setor de cremalheiras acompanhou o desmonte da E.F. Cantagalo e conhecia diversas histórias envolvendo o desmonte da Ferrovia de Petrópolis realizado pela mesma equipe. Histórias que muitos preferem esquecer. Parte dessa convivência extremamente valiosa está transcrita nos textos publicados pela AFTR. Não se considera um “especialista” em ferrovias, outra palavra que hoje no Brasil mais desmerece do que acrescenta. Se considera um “Homem de Negócios” e entende que o setor ferroviário só terá chance de se alavancar quando os responsáveis por ele também forem homens de negócios. Diferente de rodovias, as ferrovias são negócios. E usar para ferrovias os mesmos parâmetros balizares de construção e projeto usados em rodovias redundará em fracasso. Mozart Rosa é alguém que mais que projetos, quer apresentar Planos de Negócios para o setor.

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