Autor:
Mozart Rosa

Tempo de leitura: 14 minutos

INTRODUÇÃO

Olá, amigos e amigas!
Hoje o tema é sobre os Trens Turísticos, dando início a uma série de três partes onde falaremos dos projetos que ultimamente vieram à tona no Brasil, mais especificamente no estado do Rio de Janeiro, berço das ferrovias. Entretanto mostraremos alguns aspectos que, por diversos motivos, podem atrapalhar ou mesmo inviabilizar a concretização de tais projetos.

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  1. O Bonzismo
  2. Sobre locomotivas a vapor
  3. Porque as caldeiras de locomotivas podem explodir
  4. O uso das locomotivas a vapor em Trens Turísticos
  5. Trem Turístico de Miguel Pereira
  6. Conclusão
  7. Considerações finais

 


O “BONZISMO”

Por algum motivo desconhecido existe algo no interior das pessoas que faz com que todos queiram ser bons, é o que é conhecido como “Bonzismo”. O problema é a existência de uma linha tênue que separa o ser de ser bom de ser tolo, inocente ou até mesmo inconsequente. Existem “Bonzistas” em todos os setores da atividade humana, e não seria diferente no setor ferroviário.

Há algum tempo atrás fizemos aqui um artigo onde, de forma bem-humorada e que por analogias, desaconselhávamos o uso de locomotivas a vapor em novos projetos de trens turísticos, tivemos até o privilégio de ver postado um comentário feito por alguém que é autoridade no assunto, o Sr. Bruno Sanches, presidente da ABPF de Cruzeiro e operador do Trem das Águas em São Lourenço.

O Gordini e as locomotivas a vapor

Como sempre muitas ponderações aconteceram. Sendo assim faremos uma sequência de artigos, feitos com a colaboração de pessoas ligadas ao setor turístico, onde de forma mais elaborada traçaremos um panorama do que efetivamente é o setor turístico no Brasil como um todo, e não apenas o turismo ferroviário. Falaremos também de forma mais técnica e abrangente sobre o uso de equipamento antigos, como as locomotivas a vapor, em projetos turísticos.

Trem operado pela ABPF nos trilhos da extinta Cia Mogiana de Estradas de Ferro.
Foto de André Gehringer

Um artigo direto, mais elaborado, sem analogias, derrubando algumas argumentações sem sentido, e tentando fazer com que os “Bonzistas” conscientemente reflitam.

Cabe aqui abrir um parênteses, para ressaltar que o autor deste artigo é Engenheiro Mecânico, trabalhou durante 5 anos com manutenção química de caldeiras e também com produção mecânica, dentro de oficinas e, portanto, sabe bem do que está falando quando se trata de máquinas a vapor.

Fonte: Silverkris

Queremos mostrar também a nossos leitores que quando algumas pessoas pensam em colocar Trens Turísticos em diversos trechos abandonados, possivelmente são pessoas que nunca na vida operaram um negócio turístico, ou talvez nem ao menos sabem como a coisa funciona, resultando em propostas sem nenhum fundamento.


SOBRE LOCOMOTIVAS A VAPOR

Locomotivas a vapor podem ser descritas como panelas de pressão sobre rodas, pois as caldeiras nada mais são do que panelas de pressão aperfeiçoadas, cujo vapor tem uma destinação específica, que não é a de fazer comida. Em essência é isso. E com as caldeiras, bem como panelas de pressão, se não forem tomados os devidos cuidados podem explodir. Isso acontecia muito no início das máquinas e locomotivas a vapor, e eventualmente aconteceram alguns casos aqui no Brasil. Tanto com caldeiras, quanto com locomotivas.

Fonte: ABC

A origem histórica das panelas de pressão e sua evolução tecnológica até chegar aos motores a vapor e as Locomotivas a Vapor está bem detalhado no artigo abaixo, bem como o que efetivamente são os “especialistas”.

Porque as ferrovias “não dão certo” no Brasil?

Cristiano Ottoni escreveu no início do século XX um livro chamado Theoria das Máquinas a Vapor e um dos subtítulos do livro é “Aos meios de evitar as explosões”. Portanto é um assunto a ser levado muito a sério e não relativizado como o fazem alguns defensores da ideia do uso das Locomotivas a Vapor que, novamente ressaltamos: nunca na vida possivelmente operaram ou fizeram a manutenção de uma máquina assim.

Explosão da Fábrica da Merck em Jacarepaguá, em agosto de 1981. Fonte: fotografia exposta em leilão

Exemplo disso foi a caldeira da Fábrica de Medicamentos Merck na Estrada dos Bandeirantes em Jacarepaguá no Rio de Janeiro no início da década de 1980, em que as ondas de choque causadas pela explosão destruíram dois apartamentos no condomínio ao lado da fábrica.

Sobre as locomotivas que se envolveram em explosões os textos da AFTR têm diversos recortes de jornal, mostrando fatos ocorridos, inclusive no Brasil.

E por que pode isso acontecer? Bem, caldeiras tem alguns aspectos fundamentais: é necessário que suas tubulações permitam passar seus devidos líquidos sem obstrução, no caso de pessoas é o sangue, no caso de caldeiras é a água. Tubos de caldeira são como veias do corpo humano que podem entupir. E quando entopem as pessoas tem problemas circulatórios e podem vir a morrer, e no caso das caldeiras elas podem vir a explodir. Então homens e máquinas precisam ser cuidados e se cuidar. Os humanos, ao se exercitarem e controlarem a dieta, evitam que gorduras obstruam suas artérias, e as caldeiras, ao serem submetidas a um tratamento químico preventivo e corretivo, evitam entupimento de tubos, sendo em casos extremos necessária uma completa limpeza mecânica ou até mesmo a troca de tubos.


PORQUE CALDEIRAS DE LOCOMOTIVAS PODEM EXPLODIR?

A água que bebemos tem os famosos sais minerais dissolvidos, que na maioria das vezes nenhum problema causa aos seres humanos. Mas no caso de algumas pessoas elas desenvolvem as famosas “pedras nos Rins”, anteriormente corrigível via cirurgia e que hoje são destruídas com aparelhos de ultrassom em determinados casos. Estas substâncias que se acumulam e geram cálculos renais são os sulfetos e sulfatos, que dissolvidos na água, como explicado, nenhum mal fazem as pessoas.

Fonte: Canal Decapod no Youtube

Contudo, em tubulações metálicas, com a água a temperaturas elevadas, se inicia um processo químico de incrustação nas paredes, muito parecido nos humanos ao entupimento de veias por gorduras. Isso era desconhecido no século XIX, no início da produção de máquinas a vapor e daí elas explodiam com maior frequência. Felizmente o desenvolvimento tecnológico diminuiu isso de forma considerável, mas no caso do Brasil, acontecia muitas vezes por desleixo mesmo.

Portanto os amigos que têm 30 anos de experiência e questionam opiniões, sendo um Engenheiro Civil e, quando muito, gerente de setor: por favor, menos!


O USO DAS LOCOMOTIVAS A VAPOR EM TRENS TURÍSTICOS

Quando se fala em trens turísticos, sempre atrelado a isso, surge a conversa do uso das Locomotivas a Vapor. Entendam o seguinte: Cia. Vale do Rio Doce, ABPF, ambas operadoras que usam Locomotivas a Vapor tem um histórico de manutenção impecável de seus equipamentos, de forma personalizada. São tratadas quase que como idosos, com cuidados especiais e individualizados.

Fonte: TripAdvisor

Diferente dos automóveis atuais, ou de qualquer máquina fabricada atualmente em linhas de produção, essas locomotivas eram fabricadas de forma quase artesanal. E se você que ainda discorda de alguns pontos abordados ou debatidos, mas nunca trabalhou em uma oficina e não sabe bem nem o que é um torno mecânico ou uma linha de produção, por favor, “¿Por que no te callas?” como disse no passado o Rei da Espanha ao Hugo Chaves.

Mantê-las não é algo simples, não se vai na esquina comprar uma peça que deu defeito, nem existem peças padronizadas fabricadas em linhas de produção para essas máquinas. Não se chega nas lojas de peças pedindo a peça X para a locomotiva Y fabricada em ano Z. Não é assim.

Fonte: O Gauge Forum

E não coloquem o nome do Bruno Sanches nesse rolo, as oficinas que ele gerencia na ABPF já tem sua própria demanda, e não podem do nada parar para atender requisições externas.

Além disso as locomotivas brasileiras, principalmente as de propriedade da E.F.Leopoldina eram muitas vezes tratadas como sucata, não tendo manutenção adequada, quando muito era na base do arame e esparadrapo. Várias delas, as de propriedade da Sorocabana inclusive, depois que já não tinham mais condições de uso eram vendidas para usinas de açúcar e ainda operavam anos, sabe-se lá Deus como.

Locomotiva abandonada na Usina Victor Sence.
Fonte: Steam Locomotive Information

E são algumas dessas máquinas que muitos defensores dos Trens Turísticos querem fazer voltar a funcionar, sem saber responder à “pergunta de um milhão de reais”:

· • Quem vai manter, e como? • ·

Não existem ou são bastante difíceis encontrar os desenhos originais para eventual fabricação de peças e, novamente lembrando, não se compram peças assim em qualquer lugar.


TREM TURÍSTICO DE MIGUEL PEREIRA

Recentemente algumas pessoas convenceram o Superintendente do SESC-MG a doar uma locomotiva que operava no SESC de Grussaí para a prefeitura de Miguel Pereira operar um trem turístico. Nesse caso nenhum dos ditos “Bonzistas” envolvidos no projeto eram Engenheiros Mecânicos ou têm algum conhecimento profundo sobre manutenção de Máquinas a Vapor, ou mesmo de gestão empresarial. E ferrovia, como sempre dito diversas vezes em nossas postagens, é um negócio. Lembrando ainda também que os responsáveis por essa “brilhante” ideia provavelmente nunca operaram um empreendimento turístico e/ou não conhecem os parâmetros para definição se um atrativo é viável ou não, sendo assim tudo indica que o processo não foi feito como deveria.

Locomotiva 220, vinda do SESC Grussaí, em Governador Portela, Miguel Pereira

Sobre essa “doação” pode-se levantar uma questão, deliberadamente ou não, omitida por quem participou dela: essa locomotiva era um patrimônio do SESC de Grussaí, comprada com recursos dos comerciários. Servia anualmente a milhares de pessoas frequentadoras do SESC de Grussaí, comerciários que com sua contribuição financeira participaram da compra desse patrimônio. Pois bem, alguém perguntou a eles sobre essa “doação”? Eles foram consultados? Sem querer ofender ninguém, mas essa “doação” não parece um “confisco”?

Aparentemente a “doação” dessa locomotiva serviu apenas para satisfazer a vaidade de alguns. E no meio ferroviário infelizmente também existem muitas vaidades, como em diversos aspectos da convivência humana…

Automotriz que seria utilizada no projeto anterior em Miguel Pereira, hoje estacionada ao tempo, se deteriorando.

Existe um canal no Youtube chamado Aero, que conta fatos e curiosidades da aviação. O autor tem enorme curiosidade de saber a reação de militares administradores do MUSAL – Museu Aeroespacial, se aparecesse algum “jenio” requisitando doação de aeronaves antigas existentes no MUSAL para colocar em alguma praça de alguma cidade.

Abaixo um vídeo de uma aeronave com mais de 120 anos, idade próxima à da locomotiva “doada” para Miguel Pereira, e a forma como ela é cuidada.

A primeira licitação feita pela Prefeitura de Miguel Pereira, para que alguém se habilitasse a operar a locomotiva, fracassou como esperado e como agora tudo é culpa da Covid-19, certamente terá sido essa a responsabilidade atribuída pelo fracasso da licitação. Não foi citado que a modelagem não era a ideal, que muitas pessoas, incluindo nós, avisaram que não iria dar certo, que existiam diversos equívocos, isso tudo é detalhe que certamente ninguém comentará.

Trem de Grussaí, agora na estação Governador Portela, em Miguel Pereira

Sobre o Trem Turístico de Miguel Pereira, uma informação pertinente: os estudos necessários para implantação de um projeto de mobilidade possivelmente não foram feitos a contento, demonstrando aparentemente um certo amadorismo dos responsáveis. Aproveitamos abaixo para citar uma postagem da AFTR, uma cartilha de mobilidade, onde são relacionados os estudos necessários para um projeto de mobilidade. Qualquer um!

Cartilha de mobilidade

Será que o Sr. Prefeito de Miguel Pereira tem ou teve acesso a esse conjunto de informações?


CONCLUSÃO

Temos parada no município de Miguel Pereira uma Locomotiva a Vapor que funcionou durante anos dentro do Sesc de Grussaí, um parque fechado onde, quando a Locomotiva dava defeito, e às vezes realmente acontecia, ela era parada para conserto e as pessoas iam em busca de outros atrativos.

Algumas perguntas sem resposta, no caso de Miguel Pereira:

  • Quem vai consertar?
  • Quem vai operar?
  • Quem vai produzir peças?
  • Quem vai rebocar?

Onde a Locomotiva vai ser guardada? Afinal, até o momento está exposta ao ar livre, o que não acontecia em Grussaí. É pouco provável que funcionários do Sesc de Grussaí queiram se mudar para Miguel Pereira, que fica a mais de 150 km de distância. Existe a possibilidade de se alugar ou mesmo utilizar, mediante desapropriação, instalações próximas a Governador Portela para a instalação das oficinas e abrigo para os equipamentos. Mas até que isso aconteça, se acontecer, um bom tempo irá se passar…

Escola Técnica Engenheiro Silva Freire, a FAETEC de Deodoro.
Fonte: Facebook

Um dos responsáveis pelo projeto, inclusive, propôs que a FAETEC ministrasse cursos para operação e manutenção dessa locomotiva. Mas por acaso quem deu essa ideia sabe que em Miguel Pereira não tem FAETEC? Sabe que a FAETEC mais próxima fica em Três Rios, a 65 km de distância? E, além disso, quem vai dar aula?

Seu Santoro, amigo ex-resgatista e nosso consultor, que está com mais de 80 anos de idade, não parece ter condição física ou disposição de sair de Cataguases para dar aulas em Miguel Pereira. O mesmo pode se aplicar aos funcionários do Sesc de Grussaí. Pois a manutenção de máqinas centenárias como uma locomotiva a vapor não é simples, é um conhecimento que poucos tem, não existem manuais, e esse conhecimento é transmitido praticamente como as tradições judaicas de “boca a ouvido”.

Visão a partir da cabine da locomotiva, voltada para o fim da linha em Governador Portela. Seria isso um prenúncio?

Se alguém puder responder de forma coerente as perguntas formuladas, agradecemos. E nos desculparemos por qualquer injustiça.

Como sempre dizemos: ferrovia é um negócio, bem diferente de uma rodovia. Portanto, quem nunca na vida assinou pelo menos uma carteira de trabalho não deveria dar opinião na modelagem de um negócio, que é a ferrovia.

Tínhamos um patrimônio histórico que funcionava a contento, tirado de local adequado para atender as vaidades de alguns. Uma senhora de 128 anos tirada de seu descanso e passeios muito bem acompanhados.

Será que agora o leitor entende os motivos do fracasso do retorno das ferrovias e do fracasso devido à elaboração de projetos mirabolantes?


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vamos deixar claro que a AFTR apoia ações para o retorno do trem, seja de passageiros ou turísticos, mas dentro do nossas convicções:

· • Propostas tecnicamente perfeitas e economicamente viáveis • ·

No caso específico de Miguel Pereira são mínimas, aparentemente, as possibilidades de isso acontecer. Dificilmente algum empresário vai embarcar em tal projeto, a menos que tenha muitas facilidades e subsídios.

 

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Agradecemos a leitura, até a próxima!

A opinião constante neste artigo é de inteira responsabilidade do autor, não sendo, necessariamente ou totalmente, a posição e opinião da instituição.

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Autor

  • Mozart Fernando

    Engenheiro Mecânico formado pela Faculdade Souza Marques em 1992, foi secretário-geral da AFTR no mandato 2017-2020 e atualmente ocupa o cargo de diretor-técnico da instituição. Iniciou sua carreira profissional em 1978 trabalhando com um engenheiro que foi estagiário da RFFSA entre 1965 e 1966. Esse Engenheiro durante esse período trabalhando no setor de cremalheiras acompanhou o desmonte da E.F. Cantagalo e conhecia diversas histórias envolvendo o desmonte da Ferrovia de Petrópolis realizado pela mesma equipe. Histórias que muitos preferem esquecer. Parte dessa convivência extremamente valiosa está transcrita nos textos publicados pela AFTR. Não se considera um “especialista” em ferrovias, outra palavra que hoje no Brasil mais desmerece do que acrescenta. Se considera um “Homem de Negócios” e entende que o setor ferroviário só terá chance de se alavancar quando os responsáveis por ele também forem homens de negócios. Diferente de rodovias, as ferrovias são negócios. E usar para ferrovias os mesmos parâmetros balizares de construção e projeto usados em rodovias redundará em fracasso. Mozart Rosa é alguém que mais que projetos, quer apresentar Planos de Negócios para o setor.

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