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Por Mozart Rosa

Aumentando o prejuízo da RFFSA – A renúncia de faturamento.

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Nos capítulos anteriores você soube como a Guerra das Bitolas teve início, e como mais uma vez a RFFSA teve influência nesse acontecimento. Daremos prosseguimento a história neste texto, a parte 4 da série, onde veremos como a operação das linhas em bitola métrica, principalmente da EF Leopoldina, foram propositalmente renegadas e mal administradas de modo a destacar apenas o que traria teoricamente um retorno maior e mais imediato: o transporte de graneis principalmente através das linhas em bitola larga da EFCB.
Desejamos a todos uma boa leitura.

Depois do início apoteótico, e trágico, obviamente as coisas só tendiam a piorar. E nessa caravana Holiday em que se transformou a RFFSA tudo era possível. Até mesmo renunciar faturamento ! Sim, os senhores leram direito: a empresa estatal mastodôntica cheia de prejuízo por todos os lados deliberadamente passou a recusar faturamento. Em um determinado momento da década de 1980, por conta de uma reforma administrativa interna, criou-se a STU-RJ (Superintendência de Transportes Urbanos no Rio de Janeiro) para cuidar dos trens de subúrbio, e a STU-SP em São Paulo com a mesma finalidade. Esse é o caminho lógico em empresas: criar superintendências independentes para determinados produtos é algo usual. Aqui no caso foi criada uma superintendência para passageiros de subúrbios, ficando as outras superintendências para cargas.

Rara imagem mostrando uma composição operada pela CBTU formada pelos carros Série 100, recém reformados, em 1987.
Foto: Acervo Benício Guimarães (AENFER/AFTR)

Acontece que estamos falando da RFFSA e ela não era uma empresa normal. Ao longo das linhas de subúrbio no Rio de Janeiro existiam uma serie de empresas que se utilizavam regularmente dos serviços de carga da RFFSA e que, repentinamente, foram avisadas para que procurassem outro transportador pois aqueles trilhos passariam a operar apenas com passageiros. Alguns exemplos:

Bayer do Brasil: Recebia regularmente vagões cheios de enxofre. Contrato encerrado.

Nesta imagem feita em março de 1976 pode-se observar as linhas do antigo ramal da Bayer que adentravam a indústria.
Fonte: CPDOC FGV

Do alto do viaduto Carlos Pantera pode-se ainda observar os trilhos na curva de acesso do
extinto ramal da fábrica da Bayer em Belford Roxo
Foto: Google Street View em Julho de 2019

O presidente Juscelino Kubitschek inaugurando a fábrica da Bayer em 1958
Foto: Arquivo Nacional (imagem colorizada digitalmente)

Postes Cavan: Despachava seus postes da fábrica de Belford Roxo por trilhos. Contrato encerrado.

Ishibras: Possuía uma unidade de Caldeiraria em Inhoaíba, com linha própria saindo da estação Benjamim do Monte, onde fabricava peças que enviava regularmente para o estaleiro no Caju. Contrato encerrado

Instalações da Ishibrás (Ishikawajima do Brasil) em Inhoaíba, na época ainda atendida por linha ferroviária
Foto: Revista Marítima Brasileira (1977)

A linha do Ramal da Ishibrás saindo da estação Benjamin do Monte
Foto: Carlos Alberto Ramos (‘Melekh’) em 2007
A linha do Ramal da Ishibrás entrando na área da, atualmente, empresa Plasser
Foto: Amanda Nogueira em 2009

EBSE: Essa Caldeiraria, uma das maiores do Brasil, eventualmente despachava suas peças por ferrovia. Não era com regularidade, mas gerava faturamento. Contrato encerrado.

Instalações da EBSE – Engenharia de Soluções em Santíssimo, ao lado da linha férrea,
por onde ocasionalmente materiais e produtos pesados eram transportados pelos trilhos.
Foto: Google Street View em 2011

Matadouro Municipal de Nilópolis: recebia regularmente composições vinda de Santos Dumont-MG com gado para ser abatido. Contrato encerrado.

Matadouro de Nilópolis, que também possuía ramal ferroviário próprio
Fonte: Cosmorama News (imagens colorizadas digitalmente)

Todos os outros matadouros servidos por ferrovias, em vários locais do estado: Contrato encerrado.

Mapa mostrando a linha do Ramal do Matadouro da Penha
Fonte: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (cód.referência BRRJAGCRJ.PDF/DSG.TER.02.51)

Matadouro de Santa Cruz, que possuía ramal e estação própria. Fonte: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro

Transporte de Laticínios: Contratos encerrados.

Um trem transportando leite em uma tarde de 1959 … na Inglaterra. No Brasil esse tipo de transporte até era comum, mas foi abandonado por falta de visão e equívocos logísticos.
Fonte: Ben Brooksbank, CC BY-SA 2.0 (imagem colorizada digitalmente)

Instalações da Nestlé em Barra Mansa, atualmente fechada e onde por mais de 60 anos de existência chegou a processar mais de 300.000 litros de leite in natura por dia. A ferrovia passa atrás da indústria, como será que esse leite chegava na fábrica?
Deixamos a interrogação …

Fazendas e Usinas de Cana de Açúcar: Contratos encerrados

Locomotivas abandonadas na Usina Engenho Central de Quissamã
Foto: Lugares esquecidos

Esse é um de vários aspectos que nunca são abordados por alguém, mas sempre abordamos aqui na AFTR: os problemas causados ao setor de açúcar e álcool, com o desmonte da Leopoldina. Pesquise sobre alguma locomotiva a vapor que ainda opera em algum lugar, pesquise toda a sua história. Observará que no histórico dessa locomotiva constará a operação em algum ramal da Leopoldina, ou da EF Sorocabana (São Paulo), e ao final de sua vida útil essa locomotiva operou em alguma usina de açúcar.

Usina Barcelos, em São João da Barra
Fonte desconhecida (Internet)

Os casos são abundantes, a própria locomotiva recentemente cedida pelo SESC de Grussaí para a Prefeitura de Miguel Pereira teve esse histórico. Durante anos rodou na Estrada de Ferro Melhoramentos, posteriormente na Estrada de Ferro Leopoldina, e no final foi vendida para a Usina Barcelos em São João da Barra.

Locomotiva do SESC Grussaí sendo destinada à Miguel Pereira
Fonte: Parahybano

Isso era corriqueiro, todas as usinas tinham ramais próprios e plataformas que se ligavam as linhas tronco da Leopoldina. Repetindo: todas as usinas tinham ramais próprios e plataformas que se ligavam às linhas tronco da Leopoldina. Essas locomotivas, que ficavam dentro da área agrícola ou dentro das usinas e tracionavam produtos agrícolas ou produtos acabados, levavam todo esse material para uma linha onde os trens eram depois tracionados por locomotivas da Leopoldina, ou da Sorocabana no caso de São Paulo, para seus devidos destinos. Com o desmantelamento da Leopoldina e da bitola métrica os usineiros precisaram se virar e procurar novas formas de transportar a cana de açúcar do campo para as usinas, assim como o produto acabado das usinas para os centros de distribuição, e esse desmantelamento como já mostrado foi feito por questões políticas e econômicas, tendo o faturamento renunciado e um setor prejudicado. Foi a partir daí que se criaram aqueles caminhões-gôndola (também chamado de gaiolas) enormes com até 6 a 8 módulos (às vezes até mais) que, na realidade, mais pareciam trens sobre rodas.

Fonte: Youtube

Fazemos questão, agora pela terceira vez, de repetir a frase não para pedir musica no Fantástico mas para efetivamente mostrar que o que houve com o desmonte das linhas de bitola métrica em geral, foi um ato criminoso de lesa pátria, os que participaram disso deveriam ter sidos todos presos, portanto ressaltamos novamente: todas as usinas tinham ramais próprios e plataformas que se ligavam as linhas tronco da Leopoldina, 

 

À esquerda a linha do Litoral da EF Leopoldina. À direita os trilhos do acesso desativado da Usina de Carapebus.
Foto: Eduardo (‘Dado’) em 2011

Deliberadamente por questões políticas destruíram não apenas a Leopoldina, mas vários setores da economia como o de gado, de açúcar e outros que dependiam das ferrovias. Demorou muito para que o empresariado conseguisse fazer as coisas voltarem a funcionar. Leiam nossos textos abaixo, o estilo Leopoldina de ser, e entendam o tamanho da lambança, os prejuízos causados ao Brasil:

https://www.trilhosdorio.com.br/aftr_wp/o-estilo-leopoldina-de-ser-01/

https://www.trilhosdorio.com.br/aftr_wp/o-estilo-leopoldina-de-ser-02/

Além de diversos casos espalhados pelo Brasil e não citados aqui, pois normalmente focamos mais em casos do Rio de Janeiro.

A opção pelo granel e a falta de visão comercial ajudou na destruição do sistema ferroviário como um todo. Leite, gado, frutas e legumes se transportados com locomotivas adequadas, além do lucro do transportador, tem enorme capacidade de fomentar a economia das cidades do interior. Outra informação importante, Ferrovia não para com a chuva, a água da chuva é escoada pela brita que sustenta os trilhos. As estradas vicinais na chuva perdem sua função no transporte da produção agrícola, elas ficam interditadas, portanto o trem é a opção adequada para o transporte de produtos agrícolas.

Estrada em Petrópolis, intransitável devido às chuvas
Foto: Jéssica Duarte em março de 2020

Essa guerra prejudicou grandemente durante um tempo o abastecimento do Rio de Janeiro. Com o objetivo de, a todo custo, destruir o legado da EFL, se esqueceram que em muitas fazendas por onde passavam suas linhas existiam plataformas para embarque de gado e produtos hortifrutigranjeiros, transporte não tão volumoso nem lucrativo como o de graneis, mas que geravam faturamento substancial. Se o lucro era pequeno era justamente pela falta de investimento em equipamentos adequados e na reforma das linhas.


Vídeo que demonstra a importância das ferrovias para o transporte de carga viva
Fonte: Canal da AFTR no Youtube

Trem de gado em Bauru na década de 60

O encerramento do transporte de carga viva, outro grande erro cometido, foi fatal para a economia de diversas localidades que contavam com o trem para esse transporte. Foi preciso que os produtores, em curtíssimo espaço de tempo, se adaptassem para fazer esse transporte por caminhões.

Não deixem de acompanhar essa sequência, em breve será publicada a quinta e última parte da Guerra das Bitolas. Não percam, e até a próxima !

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Agradecemos a leitura. Até a próxima !

(A opinião constante deste artigo é de inteira responsabilidade do autor, não sendo, necessariamente, a posição e opinião da Associação)

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Autor

  • Mozart Fernando

    Engenheiro Mecânico formado pela Faculdade Souza Marques em 1992, foi secretário-geral da AFTR no mandato 2017-2020 e atualmente ocupa o cargo de diretor-técnico da instituição. Iniciou sua carreira profissional em 1978 trabalhando com um engenheiro que foi estagiário da RFFSA entre 1965 e 1966. Esse Engenheiro durante esse período trabalhando no setor de cremalheiras acompanhou o desmonte da E.F. Cantagalo e conhecia diversas histórias envolvendo o desmonte da Ferrovia de Petrópolis realizado pela mesma equipe. Histórias que muitos preferem esquecer. Parte dessa convivência extremamente valiosa está transcrita nos textos publicados pela AFTR. Não se considera um “especialista” em ferrovias, outra palavra que hoje no Brasil mais desmerece do que acrescenta. Se considera um “Homem de Negócios” e entende que o setor ferroviário só terá chance de se alavancar quando os responsáveis por ele também forem homens de negócios. Diferente de rodovias, as ferrovias são negócios. E usar para ferrovias os mesmos parâmetros balizares de construção e projeto usados em rodovias redundará em fracasso. Mozart Rosa é alguém que mais que projetos, quer apresentar Planos de Negócios para o setor.

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