Tempo de leitura: 10 minutos

Por Mozart Rosa

A Guerra das Bitolas
A Disputa EFCB X EFL
A História Secreta da Queda das Ferrovias

Continua após a publicidade

Atendendo a pedidos falaremos de forma mais detalhada sobre a Guerra das Bitolas, um episódio desconhecido da maioria, que foi um desastre para o Setor Ferroviário Brasileiro.

Para relembrar: falando de maneira descomplicada o termo Bitola é utilizado no meio ferroviário para designar a distância entre os trilhos.

Cabine de sinalização próxima à Mangueira, da EF Leopoldina. Cabines como essa eram responsáveis pelas sinalização e troca de vias dos trens nas linhas de bitola métrica em determinados trechos.
Fonte: Arquivo Nacional BR_RJANRIO_EH_0_FOT_EVE_06295_d0004de0045

Voltando ao assunto, onde tudo começa? Para isso precisamos, como sempre, relembrar alguns fatos e falar um pouco de história. A história da primeira ferrovia do Brasil todos já conhecem, então vamos falar de aspectos comerciais que pouquíssimos conhecem. A nascente indústria ferroviária mundial naquele período estava ainda se descobrindo. Não existiam ainda padrões definidos, daí existiam em produção equipamentos rodantes em várias bitolas, com cada fornecedor tentando vender seu produto afirmando ser melhor que o do concorrente.

Inclusive um brilhante engenheiro inglês da época, Isambard Kingdom Brunel, chegou ao exagero de criar uma bitola de mais de 2 metros de largura.

Por conta dessa influência, na não padronização que ocorria em escala mundial, o Brasil teve ferrovia com várias bitolas diferentes, incluindo a primeira ferrovia do país que foi a única a ter bitola de 1,676mm, posteriormente convertida para bitola métrica.

Trilhos em bitola métrica da EF Mauá, a primeira ferrovia do país, desativada e abandonada desde 1982.
Foto: Eduardo (‘Dado’) em 2009

Com o tempo se chegou a um consenso onde se sobressaiu por conta da Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB) e da Estrada de Ferro Leopoldina (EFL) as bitolas de 1,60m e 1,00m. A EFCB desde seu início, com a construção do trecho inicial que saia do Rio de Janeiro (ainda como Estrada de Ferro Dom Pedro II em 1858), optou pelo uso da bitola Irlandesa de 1,60m. Opção de Cristiano Otoni, um dos maiores engenheiros ferroviários do Brasil.

Trilhos em bitola larga (1,60m) da Estrada de Ferro Dom Pedro II, futura EF Central do Brasil.
Registro feito em São Cristóvão, possivelmente entre 1878 e 1889.
Fonte: Brasiliana Fotográfica

Por sua vez a EFL, inicialmente nacional, inicia suas atividades em 1872. Por conta da má gestão, em 1898, seus credores assumem a ferrovia e iniciam um ambicioso processo de expansão e modernização, iniciando uma série de aquisições de ferrovias, onde absorvem várias pequenas empresas, chegando a ter mais de 3000 kms de linhas em bitola métrica.

Cena no Vale do Rio Grande mostrando um trem da EF Cantagalo em 1875.
Esta companhia mais tarde foi incorporada, dentre muitas, ao sistema ferroviário da EF Leopoldina.

Foto: Brasiliana Fotográfica

Infelizmente a EFL novamente enfrentou problemas de caixa na década de 1950. Nesta ocasião teve seus problemas potencializados pelo início de operação das maquinas a diesel, que começaram a se tornar corriqueiras em outras operadoras sendo mais eficientes que as maquinas a vapor, e que ela não tinha caixa para adquirir. Além disso enfrentou problemas também com a falta de modernização de suas linhas e seu maquinário em geral, perdendo competitividade para o uso intensivo de caminhões, que começavam a se espalhar pelo Brasil e que eram muito mais rápidos que as ferrovias. A Leopoldina foi então absorvida pelo Governo Federal no início da década de 1950 durante o Governo Dutra.

Equipamentos antiquados, avarias e desorganização eram comuns, apesar de todos os esforços, durante a operação nas linhas em bitola métrica da EF Leopoldina
Foto:Arquivo Nacional

Novamente somos obrigados a falar de alguém sempre mencionado por nós pelas suas lambanças e que, de forma não intencional com suas atitudes equivocadas, começou essa guerra: Getúlio Vargas. Quem acompanha nossos textos sabe que Vargas não era aquele tiozão do churrasco, bonachão e gente boa que a historiografia oficial mostra, inclusive nossos artigos abaixo comprovam isso: dois textos mostrando a responsabilidade de Getúlio na extinção dos bondes e no início da decadência dos trens.

➡️ https://www.trilhosdorio.com.br/aftr_wp/o-motivo-do-fracasso-das-ferrovias-no-brasil-9-ii/ ⬅️

➡️https://www.trilhosdorio.com.br/aftr_wp/o-bonde-no-brasil-e-no-mundo-ii-a-decadencia-no-rio-de-janeiro/  ⬅️

Duvidam? Sigam as fontes e sigam o dinheiro, Diário Oficial e balanços.

O governo federal já tinha sob seu controle uma considerável quantidade de empresas ferroviárias que a partir da década de 1930, no primeiro governo Vargas, foram sendo incorporadas. Apesar de não ser o responsável pela encampação da Leopoldina, Vargas a manteve sob o guarda-chuva do Governo. Todavia, em 1957 com a criação da RFFSA, foi preciso definir quem iria mandar nos níveis gerenciais e que procedimentos administrativos adotar. De todas as empresas ferroviárias absorvidas anteriormente pelo governo federal as maiores eram a EFCB e a EFL, e quem iria mandar? Com ambas operando na cidade da futura sede da RFFSA, é bom ressaltar.

Inauguração da eletrificação do trecho Barão de Mauá até Duque de Caxias em 1970. Apesar da modernização do serviço ser um benefício para a população, deve-se atentar para a diferença de tratamento dedicado: o alargamento da bitola acabou por reduzir drasticamente os serviços de maior distância em bitola métrica, com destino a Vila Inhomirim e Guapimirim, que chegou a ter mais de 10 pares de horários diários, hoje tendo apenas três ou quatro. Também chama a atenção que a eletrificação da EF Central do Brasil ocorreu em 1937, enquanto a EF Leopoldina teve parte de suas linhas no Grande Rio eletrificadas apenas a partir de 1960.
Foto: Arquivo Nacional

Inicia-se aí uma das maiores guerras de bastidores do mercado corporativo brasileiro. Como tudo que é feito no Brasil é feito de modo inconsistente, nenhum dos gênios do governo que incentivou a criação da RFFSA pensou nisso, em como unir várias culturas gerenciais e simplesmente começa aí uma disputa entre os remanescentes dessas empresas. Se hoje com todo trato e todo cuidado envolvido no mundo corporativo nas fusões e aquisições, com a ajuda de psicólogos e trabalhos de integração entre culturas gerenciais acontecem problemas, imaginem em 1960 quando isso era desconhecido, e fusões e aquisições eram novidade.

Não existem registros documentais efetivos dessa situação, quando muito, comentários à meia boca de quem viveu aquele período e que hoje tem mais de 80 anos. Essa guerra de bastidores envolvendo egressos da EFL e EFCB foi extremamente nociva para a nova empresa que surgia, e a unificação de sistemas gerenciais, gestões operacionais, gestão de pessoal e sistemas de manutenção foi uma confusão. Cada grupo querendo sobrepujar o outro. Duas culturas empresariais diferentes que precisaram pela imposição do governo se unirem, e é óbvio que um grupo sabotava o outro, na busca pelo poder, um grupo querendo influenciar o outro e impor o seu modelo gerencial.

Trem de minério subindo vazio a Linha do Centro da EFCB na Serra do Mar, passando pela estação Ellison
Foto: Eduardo (‘Dado’) em 2018

Acontece que nessa guerra, os oriundos da EFCB foram vitoriosos, afinal o Brasil começou a despontar como grande exportador de minério e as jazidas de minério ficavam próximas às linhas da EFCB, consequentemente maior faturamento na bitola larga. Obviamente os vitoriosos em qualquer guerra contam a sua versão da história, e tendem a massacrar os vencidos, daí que os insumos para manutenção das linhas remanescentes da EFL começaram a rarear. Assim enquanto que para as linhas da EFCB sempre existia dinheiro nas linhas da EFL era tudo na base da gambiarra com arame e esparadrapo.

Observem a foto acima, talvez a mais significativa de nosso texto, estando em destaque na capa do artigo: trata-se da estação de Manguinhos (antiga Amorim). Observem que 4 linhas de Bitola Métrica passavam por esse trecho, permitindo dezenas de composições diárias que partiam da Estação Leopoldina, com destino a Petrópolis, Teresópolis, Itaboraí e várias outras locaidades de média e longa distância. Hoje tudo acabou. E alargaram o trecho para que?
Qual efetivamente foi a justificativa técnica? Nenhuma.
Mais um exemplo da queda de braços entre grupos antagônicos disputando poder.
Foto: Arquivo Nacional

Essa história foi confirmada e relatada por vários ex-funcionários e principalmente um ex-resgatista da EFL ainda vivo, que está na postagem abaixo.

➡️ https://www.trilhosdorio.com.br/aftr_wp/o-gordini-e-as-locomotivas-a-vapor/ ⬅️

Com o tempo as linhas da EFL foram sendo sucateadas em uma velocidade surpreendente, aniquilação total do inimigo. Não se pensava em atualizar apropriadamente para o século XX as construções e instalações do século XIX, a ordem era desativar.

Depoimento (prejudicado pelo vento) de um funcionário da CENTRAL Logística na estação Guapimirim falando sobre o descaso com o funcionamento e operação dos trens de bitola métrica do ramal.
Obs.: imagens gravadas em 2009 e editadas digitalmente para preservar a identidade de todos os envolvidos.

Essa situação não aconteceu apenas entre a EFCB e a EFL, mas também entre as outras empresas que passaram a fazer parte da RFFSA, mas a coisa foi mais acentuada entre essas duas companhias. Afinal ambas operavam no Rio de Janeiro e no Rio ficava a sede da RFFSA.

E a RFFSA, pra variar, será o foco da nossa próxima postagem sobre o assunto, a influência que a mesma teve na Guerra das Bitolas.

Aguardem e não percam !

Gostou? Curtiu ? Comente ! Compartilhe !
Agradecemos a leitura. Até a próxima !

Imagem destacada: estação de Amorim (Manguinhos) ainda com as QUATRO linhas em bitola métrica, antes da desastrosa modernização com rebitolamento para bitola larga, eletrificação dos trens e posterior extinção das linhas de bitola métrica de todo o trecho. Foto: Arquivo Nacional

(A opinião constante deste artigo é de inteira responsabilidade do autor, não sendo, necessariamente, a posição e opinião da Associação)

Loading

Autor

  • Mozart Fernando

    Engenheiro Mecânico formado pela Faculdade Souza Marques em 1992, foi secretário-geral da AFTR no mandato 2017-2020 e atualmente ocupa o cargo de diretor-técnico da instituição. Iniciou sua carreira profissional em 1978 trabalhando com um engenheiro que foi estagiário da RFFSA entre 1965 e 1966. Esse Engenheiro durante esse período trabalhando no setor de cremalheiras acompanhou o desmonte da E.F. Cantagalo e conhecia diversas histórias envolvendo o desmonte da Ferrovia de Petrópolis realizado pela mesma equipe. Histórias que muitos preferem esquecer. Parte dessa convivência extremamente valiosa está transcrita nos textos publicados pela AFTR. Não se considera um “especialista” em ferrovias, outra palavra que hoje no Brasil mais desmerece do que acrescenta. Se considera um “Homem de Negócios” e entende que o setor ferroviário só terá chance de se alavancar quando os responsáveis por ele também forem homens de negócios. Diferente de rodovias, as ferrovias são negócios. E usar para ferrovias os mesmos parâmetros balizares de construção e projeto usados em rodovias redundará em fracasso. Mozart Rosa é alguém que mais que projetos, quer apresentar Planos de Negócios para o setor.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

treze + quinze =

Previous post O Estilo Leopoldina de ser – Parte 02
Next post A Guerra das Bitolas (1) – COMPLEMENTO
error: Este conteúdo não pode ser copiado assim. Caso use o arquivo, por favor cite a fonte.