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Bem vindos(as).

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Hoje falaremos sobre capítulos da história ferroviária Brasileira pouco divulgados, comentados ou entendidos. Narrativas e fatos que ocorreram e que, no decorrer dos últimos meses, a AFTR publicou e revelou nos seus artigos.

Infelizmente muitas inconveniências também ocorreram, e hoje revisaremos e revelaremos algumas delas.

Dividimos este artigo em duas partes por ser um assunto de certa forma extenso. Agradecemos a compreensão e desejamos a todos uma boa leitura!

ÍNDICE

  1. INTRODUÇÃO
  2. AS TRÊS FASES DA FERROVIA NO BRASIL
  3. PERÍODO 1: 1854 A 1930
  4. PERÍODO 2: 1930 A 1957
  5. PERÍODO 3: 1957 À ATUALIDADE
  6. MONOPÓLIO

 


INTRODUÇÃO

O erro mais comum cometido pela maior parte daqueles que amam as ferrovias, e se propõe a falar sobre elas, é desconhecer que a ferrovia no Brasil teve três períodos distintos de existência. Infelizmente algumas pessoas focam todo tipo de comentário bom ou ruim no período compreendido entre 1957 e os dias atuais, período de existência da RFFSA e pós-privatização por meio de concessões do sistema. Lamentavelmente todos os paradigmas sobre o setor hoje acabam tendo por base o período após 1957, dentro do período RFFSA, e isso é péssimo, pois existe muita coisa importante a ser discutida e aprendida com os períodos pré-RFFSA.

Locomotiva da RFFSA em Fortaleza, ano não identificado
Fonte: Acervo Benício Guimarães / AENFER / AFTR / Trem de Dados

Juntam tudo no mesmo saco, misturam informações, esquecem ou desconhecem os outros dois períodos existentes, onde o primeiro foi de seu surgimento – a partir de 1854 com a inauguração da estrada de ferro Mauá – até 1930, e depois de 1930 até 1959. Ignoram a participação nefasta de Getúlio Vargas nas ferrovias do Brasil, outro aspecto também ignorado.

Locomotiva G12 da RFFSA, local não identificado
Fonte: Acervo Benício Guimarães / AENFER / AFTR / Trem de Dados

Isso é compreensível, afinal temos diversas pessoas egressas da RFFSA ainda vivas para falar de suas experiências, mas obviamente não temos mais ninguém ainda vivo para dar testemunhos sobre o que aconteceu no período antes 1930 e nem no período entre 1930 e 1959, dificilmente.

 

Todo o estudo desses períodos históricos, portanto, baseia-se em documentos e evidências

 

É como se alguém, ao falar da história da origem do cinema, por algum motivo falasse apenas do período de 1902 em diante, data dos primeiros filmes coloridos, e ignorasse por completo o período de 1895 até a virada do século XIX para o século XX, data de produção dos primeiros filmes em preto e branco.


AS TRÊS FASES DA FERROVIA NO BRASIL

Mais uma vez, tentando esclarecer um pouco as coisas, vamos falar dessa história em ordem cronológica:

PERÍODO 1: DE SEU SURGIMENTO ATÉ 1930

A primeira ferrovia foi inaugurada no Brasil em 1854, a Estrada de Ferro Mauá, ligando a estação de Guia de Pacobaíba, em Magé, a Petrópolis. Isso a maioria já sabe, mas esse período de 1854 até 1930 assentou as bases do que herdamos hoje. Foi um período pujante, e o mais importante de tudo e que poucos focam ao falar disso, um período em que o empresariado teve importância fundamental, sendo responsável pela maioria das ferrovias implantadas.

Posto Registro, da EF Cantagalo, em 1907
Fonte: Biblioteca Nacional

Façam as contas: foram 76 anos de grandes realizações, e grande parte do patrimônio ferroviário abandonado hoje, em péssimo estado de conservação e que as pessoas vivem postando fotos e cobrando providências, foi construído nessa época.

PERÍODO 2: DE 1930 A 1957

Estabelecemos 1930 como início de uma segunda fase no setor ferroviário brasileiro, pois foi quando começa um processo sistemático e maligno de encampação e estatização das ferrovias pelo governo de Getúlio Vargas. Uma verdadeira tragédia, varrida para debaixo do tapete por alguns que estudam de forma mais profunda o assunto, e desconhecida da população em geral.

Estação Guajará Mirim (EF MAdeira-Mamoré) em 1945
Fonte: Acervo Benício Guimarães / AENFER / AFTR / Trem de Dados

Getúlio Vargas, ao assumir o poder, cria de forma lenta e gradual as bases do Estatismo que vivemos hoje, com uma quantidade tão absurda de empresas estatais e uma presença tão intensa do Estado no cotidiano das pessoas, que a população já nem percebe que perdeu sua condição de cidadão e se transformou em um simples pagador de impostos, que aquele Quinto que fizeram nossos antepassados se rebelarem contra a Coroa Portuguesa já há muito foram ultrapassados.

Viagem de Getúlio Vargas em um trem da EF Central do Rio Grande do Norte, em 1933
Fonte: Crônicas Taipuenses

Em um processo capitalista normal empresas nascem, empresas eficientes progridem e empresas ineficientes quebram. Diversas empresas ferroviárias ineficientes quebraram, e por serem concessões públicas foram devolvidas ao Estado. Getúlio Vargas, vislumbrando transformar tais empresas em cabides de empregos para seus apadrinhados, manteve-as sob o guarda-chuvas do estado e, além disso existiu uma questão política, na ocasião. Além do Exército e da Igreja Católica, as ferrovias eram as instituições mais capilares na época do Brasil. Um trunfo político que não poderia ser dispensado.

Populares saudando Getúlio Vargas em um trem em 1930
Fonte: ALESP

Nada foi feito no sentido de saneá-las, diferente da AMTRAK americana onde existe um limite de endividamento. Aqui o prejuízo poderia ser ilimitado.

Getúlio Vargas no carro presidencial de passageiros, hoje exposto no Museu Ferroviário do Engenho de Dentro
Fonte: CPDOC-FGV

Relatórios do DNEF – Departamento Nacional de Estradas de Ferro, órgão criado em 1941, já apontavam os prejuízos nas ferrovias, então nas mãos do estado.

Um exemplo de relatório mostrando a discrepância financeira da RFFSA
Fonte: Pesquisa Felipe Ribeiro

Abaixo, como curiosidade, publicamos a relação das ferrovias nas mãos do Estado na época, e que posteriormente vieram a formar a RFFSA:

  1. EF Madeira – Mamoré
  2. EF Bragança
  3. EF São Luís – Teresina
  4. EF Central do Piauí
  5. Rede de Viação Cearense
  6. EF Mossoró – Souza
  7. EF Sampaio Correia
  8. Rede Ferroviária do Nordeste
  9. VF Federal Leste brasileiro
  10. EF Bahia – Minas
  11. EF Leopoldina
  12. EF Central do Brasil
  13. Rede Mineira de Viação
  14. EF Goiás
  15. EF Santos – Jundiaí
  16. EF Noroeste do Brasil
  17. RV Paraná – Santa Catarina
  18. EF Dona Teresa Cristina

Duas outras ferrovias – a E.F. Santa Catarina e a Viação Férrea do Rio Grande do Sul – permaneceram, na época, arrendadas aos governos dos respectivos Estados; e outras duas continuaram sob regime especial de administração: a EF Ilhéus e a EF Tocantins.

Fonte: página Centro-Oeste Brasil

Com a criação da RFFSA a maioria dessas empresas já deficitárias passaram a fazer parte da Estatal.

Locomotiva elétrica fabricada pela Metrovick, em uso na EFOM/RMV
Fonte: Acervo Benício Guimarães / AENFER / AFTR / Trem de Dados

A E.F. Santos – Jundiaí foi um caso à parte: era uma empresa lucrativa e cuja concessão se encerrou no período Vargas, mas ele espertamente assumiu a empresa de bom grado, não relicitando-a para devolvê-la para as mãos do empresariado.

Trem Cometa, da EF Santos a Jundiái, em 1952
Fonte: Acervo Benício Guimarães / AENFER / AFTR / Trem de Dados

Existe uma verdade inconveniente que precisa ser dita: se Getúlio Vargas tivesse seguido o curso natural das coisas, relicitando empresas que por diversos motivos caíram no colo do governo e posteriormente devolvendo-as ao empresariado, a realidade das ferrovias brasileiras teria sido outra.

Militares em 1930, posando em uma estação ferroviária não identificada
Fonte: Genial.ly

Getúlio Vargas levou para a administração das ferrovias brasileiras seus ideais fascistas.

Carro presidencial exposto no Museu Ferroviário do Engenho de Dentro
Foto: Guilherme Salles em 2013

Aos admiradores de Getúlio Vargas uma explicação: as ferrovias sob seu comando tiveram alguma evolução, mas mais por conta de cumprimento de contratos assinados anteriormente e de investimentos feitos pelo próprio Getúlio, entretanto foram investimentos incipientes.

Interior do carro presidencial onde viajou Getúlio Vargas
Foto: Eduardo (‘Dado’) em 2013

Associar a queda das ferrovias a crise de 1929 é outra forçação de barra. Em 1929 as ferrovias escoavam a produção agrícola de exportação, mas fomentavam a nascente indústria nacional, tendo e sofrendo um impacto, mas absorvível. Quem afirma isso desconhece o “Estilo Leopoldina de Ser”.

A Viação Férrea Rio Grande do Sul e a E.F. Santa Catarina, com novos investidores, tinham potencial para serem grandes “shortline”, esses são apenas alguns exemplos.

Trem Pampeiro, da VFRGS
Fonte: Acervo Benício Guimarães / AENFER / AFTR / Trem de Dados

 

PERÍODO 3: DE 1957 (CRIAÇÃO DA RFFSA) AOS DIAS ATUAIS

Os números podem ser manipulados mas não podem ser afrontados: várias das empresas que compunham a RFFSA no seu nascedouro já eram deficitárias, excluindo-se aí a EFCB que se tornou lucrativa graças ao transporte de minério de ferro, transformando-se também em uma empresa graneleira, o que era uma novidade no Brasil. Nossas ferrovias todas adotavam o “estilo Leopoldina de ser” com composições pequenas, transportando vários tipos de carga, além de passageiros.

Em 1961 a RFFSA chegou a encomendar algumas locomotivas diesel para operarem na EF Leopoldina, exceto nos trechos de serra com tração auxiliada por cremalheira como na Serra de Petrópolis.
Fonte: Acervo Benício Guimarães / AENFER / AFTR / Trem de Dados

Outra verdade inconveniente precisa ser dita: essas ferrovias mantinham um prejuízo crescente, pela incompetência de algumas diretorias e pela incapacidade de investir em melhorias, apenas isso. Se houvesse gente mais preparada nas suas diretorias, investimentos nas linhas além de novos veículos com dinheiro vindo da iniciativa privada, a história hoje seria outra.

Locomotiva “Canadense” 7122 nas Oficinas do Engenho de Dentro, em 1998
Fonte: Acervo Benício Guimarães / AENFER / AFTR / Trem de Dados

Outro que teve sua participação no setor, de certa forma mal interpretada, foi Juscelino Kubitschek. Foi criado um mito de que ele abandonou as ferrovias e priorizou as rodovias, mas entendam a seguinte: ao criar a RFFSA Juscelino amarrou o setor, tirou a liberdade da iniciativa privada de atuar, tendo um pensamento político de esquerda, embora isso não seja citado em nenhum livro de história. Em nenhum momento ele pensou em relicitar as ferrovias para o empresariado, e estas ferrovias em poder do estado aprofundaram o problema, na ocasião da criação da RFFSA. O resto é puro mito, pois alguém acha realmente que Mercedes Bens, Volkswagen e outras montadoras se preocupariam com um setor já sem força, como era o ferroviário no Brasil, no início da década de 1960?

Locomotiva GE U8B em Alagoinhas-BA no ano de 1994
Fonte: Acervo Benício Guimarães / AENFER / AFTR / Trem de Dados

O Governo de Juscelino Kubitschek é mais um estudado de certa forma equivocada no Brasil. A Ford iniciou suas atividades no Brasil em 1919, a General Motor em 1925, a Mercedes Bens em 1956, a Volkswagen em 1953, alguém realmente acredita que com a eleição de Juscelino Kubitschek elas começaram a ver as ferrovias como inimigas?

Locomotiva da RFFSA em Cachoeiro de Itapemirim-ES em 1994
Fonte: Acervo Benício Guimarães / AENFER / AFTR / Trem de Dados

Além de tudo isso, ao construir Brasília, ele comprometeu todo o caixa do Governo Federal, não sobrando dinheiro para mais nada, nem ferrovia e nem rodovia. Roberto Campos em seus escritos explica isso.

Roberto Campos, um dos criadores do BNDES, dentre várias de suas ações
Fonte: Senado Federal

MONOPÓLIO

Outro aspecto danoso pouquíssimo ou talvez mesmo nunca mencionado em fóruns de Internet foi o monopólio. Criado por inspiração da esquerda da época, que já existia e que era bem atuante, o monopólio impediu a entrada de empresas privadas no setor, ficando a RFFSA como único ente passível de investir no setor no Brasil. Isso criou inúmeras distorções que até hoje atrapalham o desenvolvimento de setor, mesmo esse monopólio tendo sido extinto desde 1998.

Locomotiva da RFFSA U13B na estação Barão de Mauá em 1989
Fonte: Acervo Benício Guimarães / AENFER / AFTR / Trem de Dados

Não se criaram leis novas para o setor, em nenhum governo passado, com nada sendo feito no sentido de atualizar a legislação. Foram vários anos de inatividade que fizeram o setor ferroviário estagnar, e só não foi pior pelas ações das concessionárias que fizeram vultosos investimentos, acreditem se quiser.

Acompanhem a continuação deste texto no nosso próximo artigo!

 

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Agradecemos a leitura, até a próxima!

A opinião constante neste artigo é de inteira responsabilidade do autor, não sendo, necessariamente ou totalmente, a posição e opinião da instituição.

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Autor

  • Mozart Fernando

    Engenheiro Mecânico formado pela Faculdade Souza Marques em 1992, foi secretário-geral da AFTR no mandato 2017-2020 e atualmente ocupa o cargo de diretor-técnico da instituição. Iniciou sua carreira profissional em 1978 trabalhando com um engenheiro que foi estagiário da RFFSA entre 1965 e 1966. Esse Engenheiro durante esse período trabalhando no setor de cremalheiras acompanhou o desmonte da E.F. Cantagalo e conhecia diversas histórias envolvendo o desmonte da Ferrovia de Petrópolis realizado pela mesma equipe. Histórias que muitos preferem esquecer. Parte dessa convivência extremamente valiosa está transcrita nos textos publicados pela AFTR. Não se considera um “especialista” em ferrovias, outra palavra que hoje no Brasil mais desmerece do que acrescenta. Se considera um “Homem de Negócios” e entende que o setor ferroviário só terá chance de se alavancar quando os responsáveis por ele também forem homens de negócios. Diferente de rodovias, as ferrovias são negócios. E usar para ferrovias os mesmos parâmetros balizares de construção e projeto usados em rodovias redundará em fracasso. Mozart Rosa é alguém que mais que projetos, quer apresentar Planos de Negócios para o setor.

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